segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Episódio de uma enchente

Escrevi esta crônica quando estava na faculdade, há uns dez anos, mas poderia ter sido ontem. Engraçado como ainda era ingênua na forma de ver o mundo e de escrever. Pelo menos em alguns momentos...

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Pedro não se conformava. A chuva mata em São Paulo, enquanto no nordeste o que mata é a falta dela. Quando começou a última tempestade que caiu sobre a terra da garoa, ele trabalhava na obra de um edifício na região central, primeiro emprego depois de um ano sem nenhum.

Sua historia é igual a de muitos outros migrantes que procuram uma oportunidade. Cresceu com a seca, conviveu com a fome e hoje sabe que a cidade grande não é menos hostil que o sertão. Com suas diferenças.

Depois da perda de parte da construção, que a força da água levou para Deus sabe onde, tentou voltar para casa. De trem? Impossível, o que não tinha sido depredado foi queimado por quem esperou por mais de duas horas.

Imagens inesperadas surgiram na sua memória. Pedro viu a carroça que construíra aos 12 anos quando trabalhava com o pai naquela terra ingrata. Jamais lembraria daquela carroça.

O barulho dos tiros que voavam na Sé lhe trouxe de volta ao presente. Assaltos nas calçadas, farois quebrados..., nada escapava aos seus olhos assustados. Um garoto leva a bolsa de uma "dona" debaixo dos braços - pareceu ter visto José, seu irmão caçula, correndo com o dízimo deixado pelas beatas na cestinha da igreja. A diferença estava na inocência.

A água não parava de subir. Os raios lembravam as rachaduras do chão sertanejo.

Chegando à favela onde morava, viu que seu barraco já não existia mais. A tempestade levara o pouco que tinha e o que conquistara com tanto sacrifício. Sacrifício. Essa foi a palavra que ficou. As lágrimas não vieram. O sofrimento não era mais novidade, mas um velho conhecido.

Pedro então se lembrou da casinha de sapé que um dia fora sua. Lembrou-se dos finais de tarde que, com os amigos, tocava viola e fazia repente. Agora estava no meio da noite. Os amigos, cada um tomou seu rumo.

Naquele momento, queria saber se um dia encontraria sentido na vida. Ou se em algum lugar no mundo existiria esse bicho que as pessoas costumam chamar de felicidade. Questionou, sobretudo, a propria existência. Quem era Pedro? Não era nada, só saudade.

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Dedicado à inesquecível professora Nanami.