quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Desconhecida

Por Renata Bortoleto

Seis da tarde. Hora de ir para o hospital onde você me espera, desacordada. Um caminho que eu não conhecia até o dia que você seguiu naquela maca, seu corpo ferido. Desde então, como um viciado em busca de droga, todos os dias preciso ouvir o silêncio profundo que substituiu sua voz. Arrumo minhas coisas e sigo a nova rotina. Hoje é o décimo terceiro dia.

Subo num ônibus da periferia onde moro e me jogo num banco qualquer. Não tenho forças para olhar pra as pessoas ao meu lado, atrás de mim, na minha frente... São apenas rostos, e nenhum deles me faz diferença. Cheguei no meu limite, eu poderia matar ou morrer agora. Sinto que não estou aqui, mas também não estou em nenhum lugar. Bate o cansaço, nunca mais consegui dormir. Daria as minhas poucas moedas para receber a garantia que uma destas vidas, passageiros como eu, é mais desgraçada que a minha. Ilusão. Ao levantar, vejo que estou só. Desço.

Chego, e o pesadelo recomeça. Procuro o mesmo lugar do saguão de espera, minha superstição. Pela segunda vez no dia, estou prostrado num banco de plástico esperando o impossível acontecer. Abro as pernas, curvo as costas, coloco os cotovelos nos joelhos e aperto as mãos em punho nos ouvidos. Não termino a engenharia, vem a enfermeira e anuncia, pode entrar, senhor.

Ando sem pressa adiando o encontro, o nosso. Passo por sete quartos. O rapaz do primeiro, que nunca mais vai andar, gosta de conversar com a velha do sexto, que morre de velhice. O terceiro e o quinto estão desocupados. Quando lembro disso, falta só mais um passo. Pronto.

- Posso entrar, meu anjo?

A pergunta obviamente não é respondida, e o apelido ridículo revela uma intimidade que nunca existiu, frágeis técnicas criadas pela minha cabeça para me impedir de enlouquecer. Aproximo-me da cama que mais lembra uma mortalha. Minhas mãos acariciam seu rosto, que está sempre virado para o outro lado, como quem espera um pouco de calor. Meus dedos passeiam dos olhos à boca, gesto simples, não fosse ele responsável por detonar em mim dúvidas que me atormentam há quase duas semanas.

Seu peito sobe e desce com dificuldade, você guerreia para ficar ou está prestes a ir, não sei. Vejo um fiapo de respiração, única trama que nos prende, os mesmos fios que se cruzaram naquela noite que nos conhecemos e você, intensa, jorrava vida por todos os poros.

Aceita um drink, foi o convite corajoso que eu, sendo quem sou, jamais faria a alguém. Mas ele veio de você. E justo para mim, que não tenho nada a oferecer, sou só um feio moleque pobre. Minhas pernas tremiam, e eu mal conseguia articular as palavras. Sim, aceito, respondi, já pensando em tudo o que poderia acontecer. Parecia que aquilo não era comigo.

As mãos brancas, o esmalte escuro, os muitos anéis que enfeitavam seus dedos me entregaram a bebida e o começo da nossa história, esta. Você se aproximou, senti o ar quente da sua boca misturado ao cheiro doce que vinha do pescoço. Eu ali, acuado e excitado como uma alegre presa. Em três horas e trinta e sete minutos, mais sete cervejas e a conta, seu corpo já se contorcia de prazer. Este que, coberto e quase inerte, segue rigorosamente procedimentos médicos.

- Com licença, senhor. Pode sair um instante? Preciso trocar os curativos.

A imagem da mulher linda e exótica, de pele branca e cabelos pretos, durou exatamente da bebida ao gozo. Depois que trepamos, adormeci e tive um sono cansado: sonhei que você pisava no meu estômago e na minha cara, dançando e rindo como um bruxa. Acordei de sopetão e você estava em cima de mim, mas sentada, nua e como uma estátua, naquela mesma posição de quando transamos: a impressão que tive é que você não saiu dali durante aquele tempo. Sem explicação, também não sentia direito seu peso em mim. O quarto todo um breu, não enxergava nem o contorno do seu corpo. Tudo bem, você me perguntou, com um tom estranho na voz. Sim, respondi, foi bom demais, só estou muito cansado. Fazia calor, uma poça de suor inundava minhas costas. Coloquei a mão na sua cintura e senti que também estava ensopada. Pensei no banho mas, àquela altura, o cansaço era maior. Voltei a dormir. Depois de algumas horas, a luz do dia foi chegando junto com a da visão e a da consciência, elas iluminavam o ambiente, projetando este nosso destino. Procurei você e achei, seu corpo todo aberto por uma navalha. Barriga, pernas, peitos, pescoço, braços, costas, boceta e também o pulso, um só estilhaço. Você, que ainda tinha nas mãos aquela lâmina cujo aço brilhava à luz do sol que nascia, dormia um sono profundo em cima do próprio sangue. Antes do meu desespero, ainda tive tempo de pensar, ela desistiu de cortar o próprio rosto, este mesmo que agora descansa, virado para o outro lado.

domingo, 24 de julho de 2011

Qual é a busca?

Tem outro clichê do teatro que adoro. Adoro porque é mais do que um clichê, é uma verdade. Quando a gente acaba de ver uma boa peça, fica sempre uma pergunta que perturba e pode até nos perseguir a vida toda. Se ela der uma resposta, desconfie: os livros de auto-ajuda já tentam dar conta disso.

Em "45 minutos", Caco Ciocler, que interpreta um ator decadente, questiona o próprio ofício, como se perguntasse a si mesmo: "o que estou fazendo aqui?", "o que fiz da minha vida?", "para que serve meu trabalho?", "o que as pessoas esperam de mim?". Leia a sinopse aqui.

A grande sacada é esta crise compartilhada com o público. Compartilhada não, jorrada na cara dele, e os sentimentos são muitos. A gente vai do profundo tédio até uma angústia absurda, também pela exposição do ator.

Sério, a "vergonha alheia" está presente o tempo todo. Pelo personagem que se substima e pelos pedidos agressivos e reações inflamadas da platéia, especialmente quando ele pergunta o que deve fazer para entretê-la.

Tem de tudo. Quando eu fui, um cara pediu para que ele fizesse qualquer "ceninha" de um ator global como aquele tal de "Caco Cicocler". Sim, o idiota teve as manhas de errar o nome do ator. São nesses momentos que você entende o brilho do texto e da direção, simplesmente porque já se pergunta por que mesmo esse cara se deu ao trabalho de sair de casa, qual é a busca dele.

Pouco depois, Caco dá um monólogo de Hamlet lindamente e responde em seguida: "esse foi Shakespeare interpretado por uma ator da Globo". Pena que não consegui colocar para fora o que veio na minha mente para meu colega do público, minha educação não permitiu.

Um outro pediu "leia aí alguma coisa do Paulo Coelho", no que uma moça gritou um "não" que saiu do fundo da alma. Foi nervoso, foi interessante, coloca em cheque o que está dentro da gente, nossa estupidez, valores, certezas.

É um dedo na ferida, tanto na hora quanto nas críticas. Li algumas, positivas e negativas. Acho isso muito rico. É isso o que estes artistas esperam, é isso o que eles se propuseram a fazer. No final, é este o papel da arte (pelo menos na minha opinião): provocar, desarmonizar, acessar forças que nem nós conseguimos entender racionalmente.

Mas tem quem não perceba o jogo e prefere vociferar. Faz o mesmo que o personagem: coloca para fora seu conteúdo interno. A indiferença seria sair da sala, atitude estimulada por ele nos dez primeiros minutos. Quando fui, não aconteceu. Pelo que me parece, poucos saem. Por que será?

Fico feliz quando uma obra desorganiza. Não ligo a mínima quando alguém não gosta de alguma boa montagem e, mais feliz ainda, quando reage, significa que algo importante foi acessado. É o que vale. O resto é show business.

Além das perguntas que pertubaram ("o que a gente busca quando está na frente de uma obra?", "o que a gente busca nas nossas próprias vidas?"), vem a certeza de que aquele artista está preso ao teatro de uma forma sagrada, maior que ele. É para isso não existe remédio nem volta.

Recomendo não porque foi o melhor espetáculo da vida, mas porque reflexões como estas são muito bem-vindas!


Elenco: Caco Ciocler
Direção: Roberto Alvim
Texto: Marcelo Pedreira

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Platéia em cena

Eu nunca conheci um bom ator que não tivesse paixão pelos palcos. Não só ator, mas qualquer profissional do teatro. É uma força maior, um vício, uma espécie de loucura. Tem até expressão para isso, que é ser picado pelo "bichinho".

O cinema e da televisão podem ser muito excitantes, mas a viagem maior está lá, no teatro, na arena perfeita do sagrado e do profano. Do prazer e do sacrifício. Onde se fala da dor para falar do amor. Onde o expurgo nunca é gratuito: ele jorra, agride, mas sempre em função de. Onde o desespero é bem-vindo, ganha forma e cor.

Mas por que só o teatro é assim?  É uma resposta cheia de várias outras. Tem nuances e um terreno vasto de discussão. Mas uma delas é simples e certa: a relação com a platéia.

É ela que, em boa parte, "decide" o que vai acontecer em cena. Não é à toa que os atores comentam entre si no camarim depois das apresentações: "hoje o público estava difícil", "hoje o público estava gostoso", e por aí vai.

Só nessa relação que o espetáculo é construído, porque são humanos que se reúnem para falar da sua própria condição. E é só na presença que esta troca se concretiza. É só nesse encontro que forças do inconsciente coletivo, da história da humanidade e da nossa ancestralidade são evocadas com frescor, sem nenhuma tela no meio.

Mas tem dia que é cruel. Ou porque o crítico está lá (então a tensão aumenta) ou aquele "mala" cujo objetivo é encher o saco e ficar olhando no relógio (então a raiva aumenta). A persona do ator que está ali quer morrer de catapora preta, mas o artista dele respira fundo e diz "vamos lá, esse é meu trabalho, é para isso que estou aqui".

Não estou aqui tentando defender a classe nem romantizar a experiência. Só estou descrevendo momentos em que a exposição é tão grande que a pessoa que está ali no palco (um trabalhador como outro qualquer) tem que colocar a alma na última gaveta da cômoda. Tirar a roupa em cena é fichinha. Quero ver dar um monólogo de Shakespeare para um cara que está mais preocupado com sua pipoca.

O contrário também é verdadeiro. Quando a platéia está presente e respeita, a coisa parece que rola, é uma questão de energia. Se o ator não vai bem, a culpa é dele mesmo. Se o público, além de respeitar, é alegre e receptivo, aí vira festa. No geral o elenco fica mais leve para fazer bem feito.

Tudo bem que não é uma regra geral. São conclusões puramente empíricas e até grosseiras. Mas eu queria compartilhar para, logo mais, falar o que se passou pela minha cabeça e pelo meu coração quando eu vi a peça "45 minutos" há duas semanas atrás. Juro que conto em breve.

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Sim. Eu voltei a atualizar o blog. ;-)

Até!

quarta-feira, 6 de abril de 2011

A voz de três amores

Ela tinha cabelinhos vermelhos, menos de 20 anos e um quê de metidinha. Rebelde, sensível, sonhadora. Muito diferente e muito parecida comigo. Vi nela a menina que um dia fui... Assim me apaixonei pela Clara.

Meu segundo amor tem minha idade, vive as mesmas crises e questionamentos. Disciplinada, forte, perseverante, como eu sou, sem falsa modéstia. Além de fiel, companheira, amorosa. Presente, sempre presente. Assim é a Fabi.

A terceira me apaixonei pelo riso solto e pela beleza deslumbrante de quem ilumina o palco, de quem já nasceu atriz. Taurina preguiçosa e vaidosa. É mãe e amiga... Tem colo pronto e acolhedor... Esta paixão chama-se Lilian.

O amor foi correspondido e logo nos chamamos de "Minhas". Junto a tanto paixão, uma outra, unificadora: o teatro. Foi lá que nos conhecemos e foi lá que formamos nossa parceria, fortalecida pela vontade de estar no palco e pela necessidade de passar nosso recado ao mundo.

No meio do caminho, encontramos Roberto, um gênio genioso como todo bom diretor, que por carinho e respeito chamamos de "tio". Fundamental! Foi ele que deu forma àquelas palavras que estavam engasgadas na nossa garganta.

Três meses de um processo difícil, lindo e poderosíssimo. Dele saímos melhores, mais preparadas e mais unidas. Foi assim que nasceu o espetáculo "Ensaio de um Documentário", que estreia no dia 05 de maio nos Satyros.

Na minha vaidade de jornalista, eu queria ter limpado os adjetivos, tirado os melodramas, cortado os clichês. Não deu! Mesmo porque agora quem fala é a atriz, apaixonada.


Logo posto mais sobre a peça. Por enquanto, é isso!

Ensaio de um Documentário
Elenco: Clara Laurentiis, Fabiana Moutinho, Lilian Sganzerla e Renata Bortoleto
Direção e roteiro: Roberto Andreoli
Onde: Espaço dos Satyros 2, Praça Roosevelt, 134
Quando: quinta-feira, às 21h; estreia em 05 de maio
Quanto: R$ 20 (inteira), R$ 10 (meia) e R$ 5 (moradores da praça e oficineiros do Satyros)

domingo, 13 de março de 2011

Lições da jovem senhora

Eu estava me devendo "Ensina-me a viver". Eu estava me devendo Glória Menezes. Eu estava me devendo assistir a uma superprodução num teatro bonito. Eu estava me devendo uma história de comer com os olhos - o amor entre um adolescente suicida, obcecado pela morte, por uma senhora de quase oitenta anos, que adora viver.

Fiquei o dia inteiro ansiosa feito criança, arrumada e maquiada muitas horas antes de sair de casa. Sem explicação racional, nunca faço isso! Só depois de toda a catarse fui entender o motivo da minha agitação: vi um espetáculo que é uma verdadeira ode à liberdade da alma. "Eu não sei por que os seres humanos gostam tanto de gaiolas!", diz Maude, personagem de Glória.

Tem tanto essência que não é à toa que o livro virou filme que virou peça. Acho que todo mundo deveria se dar esta experiência. Tudo é impecável: a história, o cenário, o figurino, o elenco, o trabalho de corpo dos atores, o teatro, a encenação... Um presente aos sentidos!

Este aqui é o site da produtora: http://www.primeirapaginaproducoes.com.br/. Lá tem toda a ficha técnica, algumas fotos e os comentários dos críticos. 

***

Adoro frases e diálogos! Sempre presto atenção neles:

Harold - Deus existe?
Maude - Pelo menos dois... Um dentro de nós para saber de onde viemos e outro fora para saber para onde vamos!

O teatro nunca se deixa guardar!

O coração que não desiste nunca envelhece!

Gostou? Assista aqui ao trailer. E não perca a temporada popular que vai até o dia 27 de março no Teatro das Artes (Shopping Eldorado), a R$ 30. Está em cartaz há três anos e meio e costuma ser bem mais caro. Então aproveite!


Não consigo deixar de ser tiete. A última vez que vi Glória foi na platéia de Policarpo Quaresma. Ela e o maridones - casal chique de dar inveja - sentaram atrás de mim. Fiquei lá quietinha, congelada de nervoso. Não tive coragem nem de pedir uma foto. Quer tietagem maior? 

quinta-feira, 3 de março de 2011

Teatro é carnaval

Sou do tipo de pessoa que tem preguiça no carnaval. Não do carnaval, mas no carnaval. Geralmente não entro na agitação louca, faço programas leves, mas gosto de saber que meu país está em festa, colocando cultura na rua.

No ano passado, nessa de deixa a vida me levar, acabei parando no cortejo do bloco Ilu Oba de Min, formado só por mulheres, que tocam sons africanos usando instrumentos de percussão. Lindo de morrer! E estava muito bem acompanhada pelos meus amores Thiago e a Nathaly.

No mesmo evento, assistimos também a uma peça de rua chamada O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, da Companhia São Jorge, que se misturou com o bloco. O dia foi daqueles deliciosos que a gente não esquece jamais.

Lá, a Nathaly teve uma ideia genial que infelizmente não foi para frente: um blog sobre teatro chamado Re-Thi-Na, referência aos olhos e às iniciais dos nossos nomes. Nós três seríamos os responsáveis.

Embora não tenha dado certo, o Thiago fez um post lindo, que foi o primeiro, o último e o único, uma declaração de amor a nós e a este dia.

Este ano, a festa se repete. É bonita, é de graça, é popular, é colorida, é musical, é humana para caramba. Não sei se a peça rola de novo. Ou se eles vão apresentar outra, que pode ser uma ótima surpresa, mas o bloco estará na rua. 

Foto de divulgação.

Vai lá, vai... Com certeza vamos nos encontrar!

Saída às 16h da sede do Ilú Obá De Min, Alameda Eduardo Prado, 342. Chegada e confraternização na sede da Cia São Jorge, Rua Lopes de Oliveira, 342 - Barra Funda.

E bom carnaval!

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Para os pequenos

Papais e mamães do meu Brasil. Em janeirão, minha amiga e escritora talentosa Patrícia Secco lançou um livro infantil sobre bullying, assunto importante dentro de casa. E o protagonista, Rogério, tem um bloguinho. Coisa mais fofa!

Aqui: omeninotransparente.blogspot.com

O real papel da alma

Eu perdi a peça, mas o livro eu li, tá? Agora entre natal e ano novo, enquanto a família festejava...

Adorei, ele dá um nó no cérebro. Fechei o livro com vontade de transgredir. No começo de janeiro, já voltei a minha insignificância, mas os escritos continuam reverberando na minha alminha...

Está tudo aqui aqui www.almaimoral.com e é de se lambuzar! A peça volta em março para Sampa. Oba, agora eu vou!

sábado, 26 de fevereiro de 2011

O amargo da culpa

Vi esta peça no final do ano passado e gostei muito. Ela começa na calçada do Galpão do Folias, com a atriz Patrícia Gifford jogando da sacada a imagem de uma santa.

Em seguida, o personagem de Dagoberto Feliz convida o público a entrar no espaço onde muitas cadeiras estão espalhadas.

É assim que se inicia a história de um casal que vive uma relação de favor. Ela vive pelo mundo atrás da própria sobrevivência quando, um dia, bate à porta de um homem violento, que se apaixona.

Um estudo do próprio Dagoberto e de Pedro Mantovani em cima de um texto de Dostoievski, que teve como pano de fundo o tema cordialidade. Direção do Pedro.

Vale muito a pena. O texto é bom, a encenação também, e os dois atores são excelentes. E dá muito tempo de ir - fica em cartaz até o final de março.

***

A frase da peça que mais me marcou: "é com a sinceridade que a juventude vence". Bom, né?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Episódio de uma enchente

Escrevi esta crônica quando estava na faculdade, há uns dez anos, mas poderia ter sido ontem. Engraçado como ainda era ingênua na forma de ver o mundo e de escrever. Pelo menos em alguns momentos...

***

Pedro não se conformava. A chuva mata em São Paulo, enquanto no nordeste o que mata é a falta dela. Quando começou a última tempestade que caiu sobre a terra da garoa, ele trabalhava na obra de um edifício na região central, primeiro emprego depois de um ano sem nenhum.

Sua historia é igual a de muitos outros migrantes que procuram uma oportunidade. Cresceu com a seca, conviveu com a fome e hoje sabe que a cidade grande não é menos hostil que o sertão. Com suas diferenças.

Depois da perda de parte da construção, que a força da água levou para Deus sabe onde, tentou voltar para casa. De trem? Impossível, o que não tinha sido depredado foi queimado por quem esperou por mais de duas horas.

Imagens inesperadas surgiram na sua memória. Pedro viu a carroça que construíra aos 12 anos quando trabalhava com o pai naquela terra ingrata. Jamais lembraria daquela carroça.

O barulho dos tiros que voavam na Sé lhe trouxe de volta ao presente. Assaltos nas calçadas, farois quebrados..., nada escapava aos seus olhos assustados. Um garoto leva a bolsa de uma "dona" debaixo dos braços - pareceu ter visto José, seu irmão caçula, correndo com o dízimo deixado pelas beatas na cestinha da igreja. A diferença estava na inocência.

A água não parava de subir. Os raios lembravam as rachaduras do chão sertanejo.

Chegando à favela onde morava, viu que seu barraco já não existia mais. A tempestade levara o pouco que tinha e o que conquistara com tanto sacrifício. Sacrifício. Essa foi a palavra que ficou. As lágrimas não vieram. O sofrimento não era mais novidade, mas um velho conhecido.

Pedro então se lembrou da casinha de sapé que um dia fora sua. Lembrou-se dos finais de tarde que, com os amigos, tocava viola e fazia repente. Agora estava no meio da noite. Os amigos, cada um tomou seu rumo.

Naquele momento, queria saber se um dia encontraria sentido na vida. Ou se em algum lugar no mundo existiria esse bicho que as pessoas costumam chamar de felicidade. Questionou, sobretudo, a propria existência. Quem era Pedro? Não era nada, só saudade.

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Dedicado à inesquecível professora Nanami.