segunda-feira, 8 de outubro de 2012

E Se...

Uma mulher está no espaço aberto de um elegante café no centro de uma grande cidade. Tem 24 anos, veste-se muito bem (clássica, mas adequada à idade), tem traços finos e gestos delicados. Sentada de pernas cruzadas, olha com prazer e interesse tudo o que está a sua volta, principalmente a arquitetura. Espera com tranquilidade um jovem uns cinco anos mais novo que ela. É maio, e ela toma alguma bebida quente. Ele aparece pouco tempo depois. É bonito e mais jovial que ela. Assemelham-se na beleza, na elegância e nos modos.

ELE (alegre, enquanto se senta) – Não entendi... Hoje você não pediu café?

ELA (rindo da surpresa e da pergunta inesperada) – É bom diminuir a cafeína...

ELE – Eu sabia que você ia responder isso...

ELA – Eu sabia que você responder... isso...

Os dois riem juntos. Ele pega o cardápio e passa as folhas rapidamente para ir direto nas bebidas.

ELE (olhando o cardápio, pensativo) – Hummm... Vamos ver o que vou beber...

ELA – Soda italiana...

ELE (tirando o cardápio do rosto) – O que disse?

ELA – Soda italiana... Eu disse soda italiana... Ou um frascati, se preferir... Hoje está um dia perfeito para um frascati...

ELE – Por que você está me sugerindo isso?

ELA (achando graça) – Porque você gosta e porque acho que faz tempo que não bebe... Só por isso...

ELE – Nunca foi tão fácil... (Para o garçom, que está próximo) – Pode trazer para mim uma soda italiana, por favor?

O garçom responde sim senhor e vai buscar a bebida.

ELE (dobrando cuidadosamente as mangas da camisa) – Agora sim cumpri o que prometi... Vou pagar minha dívida por ter ficado tantos anos fora... E por ter te abandonado (ri para ela, que corresponde). Já comprei nossas passagens... A gente embarca no dia 16 de julho e, se você quiser, podemos ficar lá até dois meses. Só depende de você.

ELA – Eu nem acredito que esse dia chegou. A gente vai poder visitar todos aqueles lugares, aqueles museus, aquelas praças... Amanhã mesmo vou comprar vários guias de viagem e fazer um roteiro bem detalhado para gente, dia a dia. O que será que eu preciso levar?

ELE – Nada de muito pesado. Não leve muita roupa, só o suficiente. Depois eu posso até fazer uma listinha para você. O que a gente não pode é ficar carregando peso para lá e para cá. Reservei nossos quartos num ótimo hotel muito no centro, bem próximo de tudo. Chegando lá, a gente aluga um carro.

ELA – Eu acho que não tenho metade do seu talento para fazer este tipo de coisa?

O garçom pede licença e serve a soda. O jovem agradece e bebe um gole, porque o copo está transbordando. O garçom saí.

ELE – Como assim?

ELA – Ah... Planejar... Pensar em tudo. Você não deixa escapar nada...

ELE – Aprendi com você. E você sabe muito bem disso. Pára com isso...

Ambos dão um gole em suas bebidas. Ela pára seu gole no meio lembrando de alguma coisa na bolsa...

ELA – Ah, não posso esquecer... Trouxe seus livros...

Vai pegando os livros na bolsa e os entrega a ele.

ELE – Nossa... Nem lembrava desses livros...

ELA – É, pois é... Para você ver que já tava na hora de devolver... Já vou te dizer que um eu não li... Achei chato... Ou não estava inspirada... Não sei... Mas de qualquer forma obrigada... Os outros dois foram escolhidos a dedo...

ELE – Eu tinha certeza que você ia gostar...

A conversa é interrompida pelo barulho de um caminhão que entrega de mercadorias para o estabelecimento onde estão. Ele é estacionado bem na frente do casal, dele saí muita fumaça do escapamento, que vai para o rosto dos dois. Com um ajudante, o motorista deixa o motor ligado, desce do caminhão, abre a traseira a parte de trás, retira pacotes de soda italiana e entregam ao garçom de antes, junto um nota fiscal. Porém, não voltam para o caminhão, ficam conversando demoradamente com o atendente. Mesmo incomodado, o casal não muda de lugar.

ELA (falando mais alto do que o normal) – O que foi que você disse?

ELE (idem) – Eu queria te falar que, se você quiser, eu tenho uma biblioteca lá em casa...

ELA (rindo dele) – Você não tem memória mesmo, hein, seu maluco! O que tem de bom para planejar as coisas tem que esquecido... Foi eu que te ajudei a montar a biblioteca, não lembra? Fui que eu te ajudei...

ELE (rindo dele mesmo) – É mesmo... Como é que eu pude esquecer... Você deve achar que sou um mal agradecido...

ELA – É lógico que não... Tudo o que fiz foi por amor...

ELE – O que?

ELA – O que fiz foi por amor... Este nunca faltou para você...

Pelo barulho, ele não ouve o que ela diz, mas finge que sim para não aborrecê-la. Nesse momento, pára um carro grande bem atrás do caminhão, quase cola nele, e começa a buzinar sem parar. O motorista e o ajudante continuam conversando com o garçom, não manifestam nenhuma reação.

ELE (quase gritando) – Eu queria te pedir um favor...

ELA (idem) – O que?

ELE – Eu queria te pedir um favor...

ELA – Claro, fala...

O carro começa a dar ré e a bater no caminhão. Sem parar. Dar ré e bater. Dar ré e bater.

ELE – Você pode me buscar na escola mais cedo hoje?

ELA – O que?

ELE – Eu queria saber se você pode me buscar na escola mais cedo hoje... A professora vai faltar... Não vai ter substituta... E a servente não é muito legal, sabe? Na verdade na verdade, ela é muito ruim... Ela bate nas crianças... Tenho medo de ficar sozinho com ela... Tenho medo de ficar sozinho... Tenho medo de ficar...

ELA – Não.

ELE – O que disse?

ELA – Eu disse que não.

ELE – O que disse?

ELA – Eu disse que não. Talvez você não esteja lá.

Uma moça de uns 16 anos – que segura um copo de plástico com água numa mão e um comprimido na outra – acorda uma velha doente, que toma um leve susto. Desperta suada e um pouco agitada. Ambas são pobres.

MENINA (ajudando a velha a se sentar e se acomodar no travesseiro) – Desculpe te acordar... É hora do seu remédio...

A velha não responde, senta-se na cama, pega o copo, toma o comprimido e bebe a água. Devolve o copo para a menina.

VELHA – Eu sonhei com meu filho...

MENINA – Foi sonho mesmo, porque a senhora não tem filho...

VELHA – Eu tenho.

MENINA – Tem?

VELHA – Eu sempre sonho com ele... Às vezes isso cansa... Mas no fundo eu gosto muito... Me conforta... Engravidei dois anos depois que cheguei em São Paulo... Eu me aposentei como doméstica na casa de gente rica, mas antes disso eu era puta...

MENINA (assustada) – Como?

VELHA – É isso que você ouviu... Eu era puta... Nunca viu uma puta? Então... Eu era uma... Engravidei de um marginal... Tirei... Tirei porque não tinha condições de ter um bebê... Mal conseguia me sustentar... Aliás, não consigo até hoje com essa miséria de aposentadoria... Você sabe melhor que eu... Nunca consegui...

MENINA – Nossa, como a senhora teve coragem? Isso não é coisa de Deus?

VELHA – Eu não sei que cara tem o seu Deus...

MENINA – E o sonho?

VELHA – Que sonho?

MENINA – O sonho que a senhora acabou de sonhar?

VELHA – Ah, minha filha... Esse foi só mais um... Eu sonho com ele todo dia... Cada dia num lugar... E todo dia a gente tá feliz...

MENINA (fazendo sinal) – Cruz credo... (Longa pausa) E o pai dele?

VELHA – Morreu...

MENINA – Morreu?

VELHA – Morreu...

MENINA – Como?

VELHA – Mataram ele. Ele não pagou dinheiro de droga.

MENINA – Ah...

Longa pausa.

MENINA – E com ele? A senhora já sonhou?

VELHA – Não... Nunca...

MENINA – A senhora tá com fome?

VELHA – Não.

MENINA – E se...

VELHA – Eu fui com uma amiga tirar o menino... Ela era puta também... O lugar era sujo... Mais sujo que onde eu morava... Mais sujo do que aqueles hoteis que eu fazia programa... Eu lembro da moça... Uma moça bonita... Loira, olho claro... Também novinha, que nem você, pouquinho mais velha... Estranho num era uma puta num lugar daquele... Estranho era uma moça bonita daquela num lugar daquele... O negócio em si até que foi rápido... Eu só lembro do barulho de um peso no cesto de lixo... E da voz delicada da moça bonita... Fique calma, você não é a primeira nem vai ser a última... Relaxe... Você sabia que a maioria das mulheres faz isso, não sabia? Eu mesma tenho um monte de amiga que já fez... Olha... Tente pensar numa coisa boa... Não vai demorar muito, eu prometo... Logo logo você já estará em casa... Você é amiga dela, não é? Sou sim... Se quiser, pode segurar na mão dela... Eu já libero vocês...

Velha e menina em silêncio, cúmplices.

VELHA – O que você ia me falar?

MENINA – Só perguntei se você estava com fome...

VELHA – Sim, estou com fome... Você pode esquentar um pouco de sopa?

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O samba do adeus

Aquela era a última vez que Diana entrava no barracão, vazio. A máquina de costura de Dona Zizinha, que não parou de trabalhar no último mês, agora estava desligada. Enquanto a bela mulata recolhia as latinhas de cerveja dos ensaios e as bitucas de cigarro espalhadas pelas muretas, as lágrimas corriam incontroláveis pelo rosto. Cada pedaço dos carros alegóricos, ali jogados pelo chão, lembrava um segundo do que tinha vivido há poucos dias, quando todos os holofotes e os olhos de todos os homens estavam voltados a ela.

Os gritos de guerra da sua escola agora davam lugar aos ressoares das televisões distantes daquela Quarta-Feira de Cinzas, dia de apuração. Enquanto ouvia o anúncio de cada nota, continuava no seu ato redentor de limpar aquele espaço onde jamais entraria novamente. Consumia aquele momento como nenhum outro em sua vida, como se quisesse guardar na pele e na memória aqueles que tinham sido seus dias de glória.

- Vá embora, minha filha. É o melhor que você faz.

O conselho não saía do pensamento. Ele veio, no dia anterior, da própria Dona Zizinha, a baiana mais querida da agremiação. Pouco tempo depois do fim do desfile, ainda com as fantasias no corpo, conseguiram achar um lugar na dispersão onde ninguém pudesse vê-las, bem atrás de um velho banheiro desativado. Sentarem-se no chão de asfalto quente da madrugada, onde a menina, com o rosto molhado, manchado pela maquiagem dos olhos, pôde deitar a cabeça em cima do enorme vestido branco da velha sambista. 

As palavras saíram engasgadas do coração doído daquela mãe postiça que via sua menina pela última vez. As duas aos prantos, num abraço apertado e desesperado, cheio de uma saudade antecipada.

- Como vou ficar sem você, mãezinha?

- Que mamãe Oxum te projeta, filha minha.                                                                            

E era ele, o coração, que pedia para ficar. Ele e os olhos verdes do diretor da escola, o moreno Ezequiel, também conhecido como Gavião. O desejo violento que sentiam um pelo outro ganhou um impulso ainda maior no começo dos ensaios daquele ano, quando Diana já havia deixado para trás a última sombra de sua meninice. Uma paixão que os invadiu sem nenhum espaço para qualquer tentativa de racionalidade e bom senso e agora estava prestes a arruinar três vidas. 

A terceira delas, e mais afetada, era a de Deusa, casada com Ezequiel há vinte anos, mãe de seus três filhos e também a mulher mais respeitada da comunidade. Tinha uns quarenta e poucos anos e era do tipo guerreira, cuidadora, que entra em briga para defender família, amigos e qualquer pessoa de bem que frequentasse o barracão.

As traições de Ezequiel trataram de acabar com o amor próprio de Deusa, que com ou sem carnaval estava sempre a seu lado, e também minar a moral da escola que, neste ano, estava a um passo do rebaixamento. Como se uma névoa de raiva e rancor tivesse baixado naquele lugar que sempre foi de alegria.  

E lá no fundo de seu sentimento de mulher, a inveja de quem já não gozava mais daquela maldita beleza perfeita de quem tem vinte e três anos de idade, de quem por onde passa irradia... A inveja que vinha daquela mulher, ainda bonita, que um dia já foi a mais imortal das passistas, de quem já foi princesa, de quem já foi rainha.

- Você também vai envelhecer.

Como quem ainda estava longe de saber o que era isso, Diana lavou as mãos no lavatório do barracão, pegou sua bolsa numa das cadeiras de plástico e, ao sair, percebeu que Gavião estava ali olhando para ela, talvez não por muito tempo, mas há alguns minutos. Os mesmos olhos apaixonados que não se esfriaram diante da sua realidade, que foi sua um dia e agora se apresentava como nova.

Não correram um para o outro, não se abraçaram, não repetiram nada. Num gesto delicado, cheio de respeito e gratidão, ela abaixou a cabeça, como quem salda e despede-se de um bamba do samba. 

***

(Este conto terá uma nova versão um dia). 

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Adriano

Esta é a rua do diabo.
Esta foi a rua do garoto que um dia carregou um nome, mas que por ele nunca foi chamado.

- Não quero você perto deste herege. 

As mães tinham horror quando ele se aproximava dos outros meninos, mesmo aqueles que pareciam tão atentados quanto. Costumava botar o pé na rua bem no meio da tarde, lá pelas três. Era quando começava uma gritaria de mulher chamando pra banho, pra lição de casa, pra jantar que seu pai já chegou... Tudo, menos que ficassem perto, era perigoso. É filho do coisa ruim, acreditavam. Já o padre dizia que o que ele precisava mesmo era de um bom corretivo.

- No meu tempo, a coisa era resolvida na base do sarrafo. 

O menino-diabo, por onde passava, deixava a marca da desgraça. O esperto que se aventurasse a integrá-lo no time de futebol, por pena, medo ou vontade de chamar a atenção, saía no mínimo com um nariz quebrado. Uma torção no tornozelo virava caso para cirurgia. Nem o valente da turma, nem o mais inteligente, nem o gente boa ou nem mesmo o mais devoto dos coroinhas tentava chegar perto. Era olhar para ele e desistir de qualquer boa intenção.

Era sempre o dono da bola, sem nunca ter tido uma. Cuspia quando falava, tinha dente podre, fedia o tempo todo, errava o português, carregava um monte de piolho e xingava a avó dos piores nomes. O típico galego do cabelo liso, louro, franja nos olhos cujo corpo era um sebo só. Encardido e boca suja. Unhas sujas que viviam na boca. Aspecto miserável que podia ter saído de uma mina de carvão. Repetente, mais da metade do ano letivo passava na diretoria.

Ele tinha a capacidade de reunir contra os meninos aquele veneno que a raiva e a inveja borrifam dentro da gente, mas principalmente de quem tem espírito fraco. Os mais bonitos e populares eram seu alvo predileto. Olhava para eles como quem olha o inimigo da infantaria. Ficava dias, e até semanas, arquitetando o plano que arruinaria a vida do próximo. E depois do próximo e do próximo e mais outro e depois de quem fosse. Bastava olhar atravessado.

A vingança da tarde da segunda quinta-feira de outubro daquele ano não chegou a acontecer. Os garotos não sabiam o que fazer quando viram o corpo estendido ali no chão. A mesma camiseta laranja que ele nunca tirava do corpo, tão surrada e cheia de buracos. A bermuda cinza suja do pó do asfalto. O arranhado no joelho, uma pequena mancha de cor rosa, revelando a casquinha retirada há pouco tempo, onde brincavam três formigas vermelhas. E o buraco na testa do corpo menino morto.

A bicicleta roubada no dia anterior agora se resumia a um monte de tubos, aros, rodas e guidão estilhaçados de uma forma quase impossível de imaginar, se esta história não fosse verdade. Por infelicidade, azar ou acaso, o menino, que guiava o brinquedo com a excitação de quem está no auge da uma desforra, foi de encontro a um velho Gol vermelho que vinha em alta velocidade. O motorista, embriagado, só bateu a cabeça no para-choque e torceu um pouco o pé direito. O diabo não teve a mesma sorte, vítima da semente podre da qual nasceu.

Naquela época, eu era uma espécie da namoradinha do dono da bicicleta e única amiga do menino-diabo. Ainda hoje consigo lembrar dos três toques secos que minha tia deu na porta do banheiro tentando me avisar, enquanto eu enxugava os cabelos com a toalha. Quando ela encontrou o tom de proteção para dar à voz, como os adultos fazem em horas como essas, eu já sabia de tudo.

Hoje, depois de tantos anos, não busco nem preciso de explicações. O passado e a morte são damas velhas e caprichosas que não se deixam analisar. O que sei é que tem certas existências que não deixam nenhum rastro. Pelo menos que eu me lembre, ele não deixou nenhum.

Não deixou nenhum carrinho de rolimã quebrado na garagem.
Não deixou cadernos de desenhos, nem de caligrafia. Nem papéis rabiscados com seu nome.
Não deixo um vira-lata chamado Sargento.
Nem deixou a saudade de um irmão.

Quando morreu, o menino-demônio tinha 11 anos.
Adriano seu nome.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Secura

são pedro são pedro
cê pode ser da diretoria
mas a gente é fidideus

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Mais uma entre todas

"Escrevo esta carta que você não vai ler. Escrevo pensando em quanto de eternidade pode se perder em cinco minutos. Cinco minutos em que não te encontrei. 

Cinco foram os minutos que percebi os objetos jogados, a toalha em cima da cama e as roupas desalinhadas. Coisa de quem tem pressa. 

Entendo sua partida, sofro e aceito. Não chego a querer ter vivido a felicidade. Ela sempre foi para mim alguma coisa que não existe. Você foi e assim era para ser. Sabia que chegaria este momento e que a única coisa que me restaria era respirar, respirar apenas, me deixar ser. Sabia que o cheiro que sinto agora, da sua camiseta velha de dormir ainda úmida, se misturaria com as lembranças de um sonho qualquer que, em breve, também não terá importância. 

Conhecia o nosso futuro que agora se realiza como uma tragédia, mais uma linha de um destino mal traçado. 

Não, a vida não aconteceu".

* * *

Carta-clichê.
Tarefinha feita da aula-palestra do escritor Luiz Bras.
Ruinzinha até, mas que tem alguma coisa que gosto muito. Ou que me atrai. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Programa

- Vai, cachorra, faça o que quiser de mim...
- Bora dormir.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sucesso literário

É muito microtalento...

(Em coautoria com Caio Tozzi)

Chico

Hoje vai de picadinho?

Oceano

tudo
em mim
quer água

Nem aí

amor vivi
a morte vi
ih?

Ida

v e m   s e r
e
n
c
e
r

(cole aqui a sua foto)

No rezar

lembrar da história
começar de dentro
deixar viver

A volta

retroceder
metrô
se der

Caminhada

no meu passo
a paciência
passa

segunda-feira, 7 de maio de 2012

O anjo dos anjos


Se você é do tipo que gosta de silêncio quando entra em táxi, não use os serviços do Márcio Câmara. Ele é daqueles motoristas cheios de “causos” para contar. Não interessa se é sua primeira viagem ou não, você fica sabendo da vida dele em pouco tempo. Desde a infância difícil, passando pela adolescência rebelde até chegar na família que construiu, nas viagens de acampamento que faz com a esposa e com o filhinho, aventuras que são apresentadas aos passageiros nas fotos que leva no console do carro. É tanta vida que sua fala não tem vírgula, é a ansiedade de quem gosta de desafiar os próprios sonhos, sente prazer na luta e saboreia cada mínima conquista. 

Foi quando me levou para uma reunião numa editora que descobri o seu gosto pela literatura e  o projeto pessoal de um livro, mas não era qualquer livro. Ele queria contar as histórias de vida dos moradores de rua, mostrar quem eram aquelas pessoas, o que tinham passado, qual foi sua trajetória. Depoimentos cheios de dificuldades e também de superação. De muita dor e também de alegria. Pessoalmente, como um repórter apaixonado por sua pauta, foi conhecer estes homens e mulheres para ouvir o que tinham a dizer. Registrou estas vidas em foto e em texto, uma por uma.  

Márcio não completou o primeiro grau e tem consciência de quem ainda lhe falta conhecimento formal, mas nada foi mais importante do que sua vontade de contar bonitas histórias, de ajudar pessoas, de dar voz a quem não tem, de revelar a força individual de quem simplesmente é invisível para a sociedade. Nem a opinião desconfiada da própria esposa o impediu de ir atrás de suas parcerias (revisor, diagramador, gráficas etc.), não mediu esforços para convencer quem fosse preciso. Manteve firme seu propósito, acreditando que, do seu pedaço, transformaria o mundo. 

Fiquei emocionada quando recebi o livro “Anjos da Rua – Você é Feliz e Não Sabe”, a primeira obra do taxista mais falador e sonhador do Alto da Lapa, de quem me orgulho de ser amiga. No envelope, uma cartinha carinhosa agradecia o incentivo dado no passado. “Renata, você está nos agradecimentos apenas porque, um dia, me disse 'escreva com o coração'”. São nesses momentos que tenho certeza que todos nós, sonhadores, estamos no caminho certo.

Como o próprio autor diz, "a livraria soy yo". Então, se você tiver interesse em adquirir o livro, ligue para ele no telefone 8660.4877 e leve, gratuitamente, umas boas risadas. A renda da vendas será revertida para os personagens. Muito massa, não acha? Eu acho. 

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Coisa de artista

Você já recebeu uma declaração de amor como esta?
Eu já.

* * *

Por Caio Tozzi

Tem coisas nela que só eu vejo, tenho certeza.
Outras em mim, só ela tem. Como nunca ninguém.
As razões de acontecimentos deste porte na história da humanidade são tão simples como a possibilidade de uma rima insólita no meio de uma frase sem qualquer intenção.
Poesia pura, sem força, sem explicação.
Encontro nos versos do maior poeta do nosso cancioneiro – afinal, quem seria melhor para nos entender? -  um único e singelo fator que resume os porquês da maior transformação do mundo:
tudo se fez porque era ela. E porque era eu.
E porque assim era o amor.
Como um quadro bem pintado.
Um romance bem escrito.
Uma poesia bem versada.
Uma canção bem cantada.
Amor bem amado é como arte.
Coisa de artista, mesmo.
Como era ela.
E como era eu.

sábado, 7 de abril de 2012

Eterno, maluco, poeta

Antes de "Raul - Início, Meio e Fim", o documentário de Walter Carvalho, não lembro quando foi a última vez que um filme me arrebatou de uma maneira tão intensa. Foi um estado de choque inexplicável, irracional, que me fez chorar como criança, involuntariamente, durante uns 20 minutos. Fiquei o tempo todo tentando entender esta reação. A conclusão ainda está incompleta, até porque acho que o "que pegou" nem eu consigo explicar, mas estou até agora atrás das 
respostas. Obrigatório!


quinta-feira, 22 de março de 2012

Guichê 57

 - Não, não é aquela ali não, menina. É outra. Ela ainda não chegou. Entra às nove, mas é a única pessoa que o chefe deixa chegar às dez. Primeiro porque ela trabalha aqui há vinte e cinco anos, segundo porque da semana que vem não passa. Muito dedicada ela, sabe. Uma boa senhora, tem marido, é mulher direita. Aqui na repartição nem olhar para o lado ela olha. A filha está grávida, esperando o primeiro netinho dela, sabe, uma judiação. Imagine quando a criança souber que a vó morreu desse jeito? Coitada dela, menina, nem poder conhecer o netinho ela vai. Ou netinha. Uma boa senhora, sabe, nem de fofoca ela é, coitada. Cruz credo.

A mulher entra com ar aparentemente saudável, dando bom dia a todos.

- Reparou que agora ela usa batom, rapá. Nunca vi a velha usando batom, vermelho encarnado ainda por cima, coisa de rapariga. E agora anda de salto alto. E para trabalhar aqui lá precisa andar de salto alto? Só porque sabe que vai morrer está toda toda, acha que só existe ela na face da Terra. Quero ver cair uma hora dessas, torcer o tornozelo. Eu é que não vou socorrer. Sim, porque sempre que acontece essas desgraceiras aqui no departamento é para mim que o chefe olha - "corre com fulano pra o hospital, põe pedra de gelo na cabeça do ciclano". Deus que me perdoe, mas tenho para mim que Ele sabe o que faz. Se toda mulher que descobre que vai morrer resolver virar um troço desses, é melhor ir logo de uma vez.

Ela finalmente chega na sua mesa de trabalho, o guichê 57. Trabalhou durante 23 anos no 31, mas pediu para mudar de baia porque a sua era muito perto do banheiro masculino, não conseguia suportar aquele cheiro. Sua transferência demorou dois anos para sair, a repartição estava com outras prioridades, mas o importante é que seu pedido foi atendido, depois de ter sido protocolado por sete instâncias competentes. Afinal, ela merece.

Aparentemente a rotina continua a mesma para quem trabalha ali. Nunca muda - nem para quem viverá mais 50 anos nem para quem esta prestes a morrer. E para ela, que se enquadra na segunda categoria, não é diferente. Apesar disso, os ânimos estão, sim, exaltados, os estômagos revirados e as cabeças confusas. Dá quase para tocar o peso do ar parado, este mesmo que abafa a suposta harmonia instaurada no departamento.

O fatídico dia chega e ela também, usando roupas confortáveis e tênis, algo fora de cogitação em tempos normais. Entra pela mesma porta que atravessa há 25 anos, todas as manhãs, sendo hoje a última. Posiciona-se num dos cantos da repartição, de frente e ao fundo para quem entra. Quase nunca passa por lá, mas sabe que é ali que deve ficar.

- Meu coração está que não pára de bater, menina. Ponha a mão aqui...

No total são vinte e três colegas de trabalho que estão ansiosos pelo início do espetáculo. Um respira fundo, toma coragem e vai pedir ao chefe para liberá-los por trinta minutos. Não podem perder aquilo por nada. Mal sabem que também ele tem contado os dias no calendário, como criança em véspera de aniversário, e que esta autorização está dada há muito tempo, carimbada e protocolada pelas sete instâncias competentes.

Os marcadores sonoros param. As pessoas que esperam por atendimento há mais de uma hora são amorosamente encaminhadas até uma sala de espera confortável, com sofá, água, ventilação e algumas bolachas de maisena. Comem feito robôs.

- Acho que ainda não começou. Faz cinco minutos que a vi andando para lá e para cá. Ai se ela estiver de palhaçada com a nossa cara. Você trouxe aquela pipoca doce para gente?

Antes da resposta, ouve-se um pequeno estrondo, um barulho pouco comum que vem da terra. O chão balança, como no início de um terremoto, para pavor geral, mas logo pára. Todos olham para ela, e ela olha para todos. Estão assustados.

Como quem clama por socorro, pede um copo d'água. Alguém corre para pegar, e seu coração começa a disparar. Fecha os olhos e tenta respirar tranquila, mas não consegue. Abre os olhos de novo para ver ser a água já chegou. Já. Pega o copo, que escorrega pelo suor de suas mãos e se espatifa no chão para onde seguem as cabeças de seus comiserados espectadores. Na fração deste segundo, soltam um resmungo de pesar, num grande coro.

Os cacos são rapidamente recolhidos, e o segundo copo chega na urgência dos angustiados. Ela bebe numa tacada, como quem busca retomar as forças e o orgulho perdidos. Percebe que seus pés já estão colados, não consegue dar mais nenhum passo a frente, e as lágrimas começam a surgir. Uma moça loira de óculos não resiste e também chora.

Uma voz vinda da plateia pergunta se ela precisa de alguma coisa, ela responde que não com a cabeça, já que a voz está embargada como quem guarda o resto de energia para os momentos finais. As lágrimas são mais grossas agora. Sente um primeiro cansaço muscular que sobe desde o tornozelo. Senta-se de cócoras, não adianta, o que quer fazer é impossível para o corpo humano. As dores vão, aos poucos, ganhando espaço, como invasores tomando território numa guerra. Nas juntas e nos músculos, é pior. Tenta encostar-se na parede, mas está distante dela. Abaixa a cabeça e vê que seus pés já são dois blocos de concreto.

- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja Vosso nome, perdoais as nossas ofensas...

"Não fiquem com pena de mim". Todos concordam sem saber porque concordam, sem entender qual teria sido a culpa daquela mulher, o que ela fez para merecer. Mas ninguém ousa perguntar nada. Ninguém ousa falar nada. A enchente de cimento inunda seu joelho.

- Desculpa se algum dia falei mal da senhora...

Rende-se a fofoqueira, num vômito de coragem.

- Qual será mesmo o nome do seu netinho?

Tenta a outra, buscando assunto agradável que surte efeito contrário. Ambas desabam num pranto inconsolável. Ela lembra daquilo que não será vivido, do que poderia ter sido e do que nunca virá a ser. Já com a cintura transformada num pequeno muro, responde: "José".  

- Quero que saiba que somos gratos aos seus préstimos em todos estes anos. A senhora sempre foi muito importante para nós, para nosso trabalho...

O discurso do chefe, que soaria falso em qualquer outro momento, é interrompido pela própria emoção. Ele corre para abraçá-la, em seu primeiro gesto de carinho em todos estes anos. Atira-se no colo dela como se este ainda fosse de carne e osso, mas encontra o busto petrificado de uma mulher ainda em vida. Ela corresponde, tentando descansar sua cabeça - o único membro que ainda se movimenta - nos ombros do homem.

- Obrigada. Não se preocupe. Ficarei bem.

A processo acaba com grande comoção. Os monitores são ligados, e quem aguardava para ser atendido volta ao salão de espera. Quinze minutos depois, as colegas já haviam recolhido, com a ajuda de uma pá e de uma vassoura, todo aquele entulho, colocando-o num grande saco de plástico preto que, um dia depois, seguiria viagem em cima de um caminhão.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Nada nem nunca

É quase uma da manhã, e ela levanta-se, raro acontecer. A última vez que teve insônia faz cinco anos, talvez um pouco mais, e não gosta de se lembrar o porquê. Acordar no meio da noite é para quem tem o espírito fraco, afirma para si em meio às suas rezas, e irrita-se só de pensar na possibilidade de entrar para esta categoria de gente. Não, ela não, insônia nunca.

Quem passa na frente daquela casa e daquela existência pode achar fácil, mas não é. A perfeição é déspota cheia de vontades, vampira que suga o sangue da velha da mansão. Não parece. Fala-se na província que a dona da história nunca morrerá, mas ela tem certeza que sim, daqui a trinta anos, dormindo, sabe até o dia. Orgulha-se de sua boa saúde e memória - por estas e outras, é admirada na vizinhança. Queria também poder controlar o pensamento.

É comum vê-la com um pacote de compras na mão explicando ao padeiro, ao vendedor de flores, ao farmacêutico, às crianças, ao padre, aos funcionários, às paredes, aos seus santos e às suas vozes que estas são qualidades conquistadas numa vida inteira, com disciplina e esforço sem comparação. Quem gosta de abusos é porque não gosta da vida, afirma a quem estiver ouvindo. Na cabeça dela, na cabeça e no coração, na cabeça, no coração e na alma, ninguém deste mundo nem de qualquer outro está autorizado a deturpar esta ordem.

Peppe, o caseiro, é capaz de passar horas escutando estas sabedorias e palavras bem faladas desta senhora distinta com seu coque muito arrumado. Quando está na lida, fica procurando entender como pode um ser humano ser assim, tão bom. Como é que nunca se casou? Não, não teria sido possível, pensa. Naquelas bandas, não existia homem à altura, aqui só tem gente bruta que só entende de planta e bicho. Órfão desde pequeno, queria ele ter nascido seu filho, desejo íntimo que nunca contou nem para ela nem para ninguém. Também para quê? Mas sempre agradece a Deus pela oportunidade de ser seu empregado, justamente dela, da dama da mansão. A mesma que hoje não conseguiu dormir. 

O sono da dona é tão sistemático quanto suas atividades do dia. Dorme sempre às oito, depois de tomar uma leve sopa de tomates. Acorda às quatro, quando se arruma até que se pareça uma estátua de gesso. Cama feita. Refeições prontas. Proteínas e vitaminas. Digestão. Louça e roupa. Limpas e no lugar. O leite ao lado do pote de café ao lado do de açúcar. Cheiro de limpeza e tapetes ao sol, até nove e meia da manhã.  Zela pelas coisas, mesmo aquelas que ninguém vê. Tem duas empregadas dentro de casa, uma em cada turno. Sempre de olho em Peppe, funcionário da roça, de uma juventude e beleza que agridem. Casado, pai de três pestes perfeitas cor de ouro, encardidas e com olhos de anil. Ela, por vezes, evita sua presença. Em outras, precisa mais que tudo.

Hoje experimenta uma noite sem dormir. Época de colheita e de lua cheia, uma terça-feira. Roupa de cama limpa, recém-trocada. Está deitada nos lençóis de flores miúdas. Outras flores estampam a longa camisola de algodão que cobre o corpo pesado. É dominada pelo mesmo pensamento de antes, que de agora em diante nunca mais irá embora.                

Amanhã, ela ganhará uma noite bem dormida para na terceira viver tudo de novo, e assim para sempre será. O tempo se chamará loucura, as noites descerão para as manhãs que subirão para as tardes. No crepúsculo do meio-dia, até o fim de seus dias, ela chorará de pavor e desejo. Disciplina há de ser cansaço, um gosto de pó fará residência em seus lábios e em seus olhos. Nem chás, nem rezas, nem velas trarão sua rotina de volta,  nem mesmo a leal presença e devoção de seu amado Peppe. O viver terá outro nome e seguirá uma nova procissão, com uma cantoria mais alta, uma cruz mais pesada, em passos grandes e dolorosos, tão vivos quanto mortos. A vila da dona terá cada vez menos notícia, e as madrugadas, como crianças que pedem um novo brincar, hão de habitar novas formas.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Almodóvar é sempre Almodóvar?

Fui assistir "A Pele que Habito" pouco antes do Natal e posso afirmar que, até a semana passada, não tinha entendido o filme completamente. A história estava clara, era provocante, criativa, interessante: nesse ponto, sou mais uma das milhares de fãs que mais uma vez caiu nas graças do diretor, mas confesso que não havia captado o que ele queria, qual foi a dele nesta produção, que pele ele estava afim de habitar. 

Um amigo achou que ele passou um pouco do ponto no thriller. Concordei, tinha uma exibicionismo velado que dizia para a platéia: "olha como eu sei fazer suspense, olha como eu consigo surpreender, olha como eu posso fazer diferente". Mas também isso não me incomodou: pelo contrário, foi até o que me divertiu.

Mas este engasgo cuja razão eu não identificava continuou, e tenho certeza que para muita gente foi assim, porque não ouvi nenhuma opinião que não passasse de "que visceral", "que intenso", "que forte", "Almodóvar é Almodóvar". Bom, se é assim, a vida continua.

E continuou até semana passada, quando outro amigo inadvertidamente me ajudou a entender. Enquanto ele me contava suas impressões sobre o filme, consegui chegar na possível origem do meu incômodo. A tese era a seguinte: será que Almodóvar, pelo menos nesse filme, foi tão Almodóvar assim?

Para ser mais específica, estou falando da hierarquia de gêneros sobre a qual ele constrói seus personagens, geralmente mulheres-fortes-obstinadas-heroínas-vitimizadas, e os homens-escrotos-manipuladores-que-merecem-morrer-no-final. A impressão que dá é que essa marca (poderíamos chamar de discurso?) que encantou tanta gente em seus filmes mais genuínos, quando passou para um thriller pretensioso, simplesmente não colou.

E esta hipótese me faz pensar em outras duas. A primeira é se esta fórmula (as mulheres são legais, os homens não) já não está um pouco desgatada quando se olha para a contemporaneidade. Será que este conjunto de arquétipos, mitos e crenças ainda conversa com quem somos hoje, homens e mulheres? Não falo apenas sexuais, mas de mudanças em todos os sentidos (sociais, culturais, psíquicos, políticos, morais, espirituais e sexuais). Para melhor ou pior? Não sei, esta já é outra (e longa) discussão que não cabe aqui. Mas o fato é que estes extremos estão cada vez mais perto do centro. O bem já não é tão bom assim, e vice-versa. A linha está tênue demais para que a gente precise escolher um lado. Guerra dos sexos então, nem se fale. Esta sim fede a naftalina. 

Muito em função destes pensamentos, esta construção da relação entre vítima e carrasco, se não for roteiro de quadrinhos, é sempre muito relativa. Sim, o filme até tem um pouco desta estética comics (ok, entendido, divertido), mas também revela uma pretensão de estimular uma reflexão mais ampla, um pouco mais filosófica. Se foi esta da mulher como vítima de seu meio, ah não, de novo não, please. Será mesmo que nesta relação homem-mulher existe uma força tão arcaica assim que nunca há de mudar? Se existe, quero saber qual é.

Daí chego na segunda hipótese, que tem a ver com a imagem que ele construiu como o diretor que mais entende da alma feminina. Vários fatores determinaram sua fama: ele fez filmes incríveis (e com mulheres poderosas como Penélope Cruz), tem este jeito de gênio maluco do circuito alternativo e é gay (teoricamente, ninguém melhor que ele para entender desta tal alma feminina). Funcionou. Até Angelina Jolie fez "a desesperada" na frente das câmeras para conseguir um papel seu. Justo ela, tão acostumada a ganhar. Ele bem que poderia responder: "se quer entrar para meu time, vai ter que bancar a coitada".


Piadinhas infames à parte, minha dúvida é. Se nos ama tanto, por que condenou o herói da história a viver aprisionado no corpo de uma mulher? Soou como punição máxima de uma existência, maior que a morte. Foi isso mesmo ou será que estou louca? Eu não quero que me expliquem o roteiro, só quero saber que força pulsante fez Almodóvar chegar a ele. 

Não deu para saber direito qual foi. Só posso dizer que "A Pele que Habito" tem cheiro de raiva embutida, e dessa vez não é pelos homens. Se não é raiva, pode ser que ele tenha se cansado de falar deste universo (que ele próprio criou), e acabou saindo assim.

Você que assistiu, feche os olhos, invada o filme e tire a máscara do Antônio Bandeiras. É provável que encontre ali Almodóvar e seu alter ego masculino, tão controlador quanto o de seus personagens. Será que não? Se eu estiver certa, tudo bem. Afinal, que mal há nisso?

***

Para quem ainda não viu, aqui está o trailer.
Vale a pena.
Almodóvar é sempre Almodóvar!



Esta história toda me fez pensar nas músicas do Chico Buarque. Muita gente fala que ele entende a alma feminina, mas eu não acho não. As letras até saem da boca "mulherzinha apaixonada", mas a alma mesmo é do bom e velho "cafa". Pode prestar atenção.

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Também fico pensando na definição de alma feminina. Alguém tem? Coloquei no Google, não saiu no Wiki, é sinal que não existe. :-)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Poeta da sétima arte

Só tive contato com a obra do cineasta russo Andrei Tarkovsky no ano passado. Quando isso aconteceu, ele imediatamente virou alvo da minha obsessão. Descobri que sempre foi uma referência mundial no cinema (matéria obrigatória nas universidades) e fonte inspiradora de cineastas como Lars Von Trier, outro diretor por quem sou muito apaixonada.

Ao contrário do que seria natural, li "Esculpir o Tempo" antes de assistir aos filmes, livro que também pode ser considerado uma biografia, só que menos pessoal e mais artística. Encontrei ali sua visão da arte, sua compreensão do papel do cinema (e do cineasta), sua trajetória de vida, o processo de trabalho de seus filmes, histórias sobre a rica e amorosa troca com seu público, da relação complicada com os críticos e do compromisso de fé que, na sua opinião, o artista deve assumir com a humanidade, de uma maneira divina e transcendente, como ele mesmo fez.


"O gênio não se revela na perfeição absoluta de uma obra, mas sim na absoluta fidelidade a si próprio, no compromisso com sua própria paixão".

Em seguida, assisti "O Espelho" e fiquei absolutamente transtornada, mas sem entender direito porquê, pelo menos na primeira vez. A câmera é o olhar da criança que ele foi em sua infância na Rússia, um registro tão verdadeiro que somos capazes de sentir o cheiro da cozinha da mãe e o vento gelado da tarde que bate no rosto quando se tem seis anos idade e ainda não se consegue apreender a lógica do mundo. Esta nostalgia (sentimento que inclusive dá nome a outro de seus importantes filmes) é uma marca constante em sua obra.



Fora da caixa da narrativa clássica, ele transforma estados de espíritos em imagens poéticas de imensa beleza estética, como se cada enquadramento fosse uma pintura. E, por meio desta voz memorialista, apresenta-nos os aspectos mais inexoráveis da existência humana, como o passar do tempo, a força da ancestralidade e os laços que nos prendem às origens.

De alguma forma, ele resumiu ali um pouco do que, de maneira utópica, eu gostaria de ser capaz fazer com o conteúdo da experiência humana, sem frescuras e com verdade. Posso dizer que explicou algo sobre mim mesma que, sozinha, eu jamais conseguiria entender.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O codinome da morte

"Sete", este é o nome da primeira peça da dramaturga Dione Carlos, o tal número cabalístico que, por si só, já chama a atenção, aguça a curiosidade, mas que é só o começo da viagem. Daí vem o texto. O bom fruto de sua vivência estudando a "dramaturgia do transumano" de Roberto Alvim, que sabiamente deu palco a ela no Club Noir.

Dione problematiza o sujeito. Não há personagens, mas há muitos ao mesmo tempo. O general e o médico do agora tomam o lugar da mãe e a professora da memória. São tantos e também um só, um único indivíduo que muda de cara dependendo de sua posição na órbita, da distância que está em relação ao sol, explicaria a autora.

Também não há narrativa linear, mas fragmentos de experiências humanas numa guerra. No caos artisticamente organizado que criou para si, e para todos, a autora encontra a sua voz, enquanto nós, espectadores, nos enxergamos ali, no palco, vivendo uma trajetória universal. O espetáculo conversa com cada um de nós porque conversa com toda a humanidade - a sensação de que "isso tem a ver comigo" é atualizada a cada cena, a cada fala, a cada intervenção. E nosso cérebro, coitado, tão acostumado a começos, meios e fins, fica prazerosamente clamando por satisfação, uma dor desconhecida que se mistura ao gozo.

Ah, sim. A história? Você quer saber qual é a história. Bom, não sou eu que vou contar. Responder a esta pergunta seria destruir a dramaturgia e o olhar de cada um sobre ela. É como inferir num paladar que não é meu. "Sete" é uma obra aberta num sistema fechado, redondo. Para cada pessoa, bate diferente, pega de um jeito. É peça para ir lá e se servir.

Daria pra dizer que é sobre uma mulher (Sete?) num contexto de guerra, da opressão do homem sobre o homem, dos vários lados que existem numa situação limite. Porém, esta conclusão (uma entre várias possíveis) reduziria a proposta a muito menos do que ela é. Estou falando de um texto construído a partir de metáforas que proporcionam a ampliação da experiência, uma vez que esta guerra tanto poderia ser real quanto estar dentro de nós.

O texto ganha potência na direção da atriz Juliana Galdino, que, como sempre, extraiu o melhor do elenco formado na Paralela Noir, a oficina de atuação da casa. Mais uma vez, os atores e atrizes apresentam a mesma força em sua interpretação. Diferente da maioria das peças em cartaz em São Paulo, ninguém fica perdido em cena sem saber o que dar nem o que fazer. E a luz - que no Noir é tão importante quanto texto, direção e atuação - é bonita e surpreende.

"Sete" deve voltar logo mais.  A reestreia está prevista para o dia 12 de janeiro. É bom acompanhar lá no site (www.ciaclubnoir.com.br) e não deixar de ir.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ação institucional com teatro

O espetáculo "A Colcha de Sonhos" foi uma iniciativa do Santander que tive a honra de participar como dramaturga entre 2010 e 2011. Trabalhei em dupla com a atriz Joana Pegorari na concepção do roteiro e, na produção, contei com uma equipe incrível de atores, músicos, produtores, diretor e cenógrafo, todos amigos e artistas talentosos.

O projeto tinha como objetivo dialogar com microempresários de regiões carentes do país sobre temas como sustentabilidade, ecoeficiência, autoestima, educação financeira, empreendedorismo e cooperação. A ideia era gerar reflexão sobre como atitudes responsáveis com as pessoas e com o meio ambiente podem trazer resultados positivos para os negócios e equilíbrio na vida pessoal.

Criamos a história de Tonico, um menino sonhador que conhece uma costureira muito especial, sua nova vizinha. A partir desta amizade, ele passa a ter uma nova visão de mundo e a promover a transformação da realidade de todos a seu redor, sobretudo de seu pai, um empreendedor que está com dificuldades na administração de sua mercearia.

Por ser uma peça de caráter educativo, foi preciso atenção no formato: por isso, adotamos uma linguagem clara e, ao mesmo tempo, divertida e criamos uma farsa (bem ao estilo "A Grande Família"), construída com elementos de humor, interação com o público, romance e realismo fantástico (por exemplo, a história tem um cachorro que fala).

Parte da caracterização dos personagens e do tratamento dos temas foi desenvolvida com base nas conversas que Joana e eu tivemos com microempreendedores da comunidade de Paraisópolis. Partimos das experiências deles para que a peça fosse o mais crível possível.

Foram realizadas três temporadas (uma em São Luis do Maranhão e duas em São Paulo), e o espetáculo ainda virou websérie, que está disponível a quem se interessar. Sou suspeita, mas mesmo assim posso dizer que vale muito a pena assistir e compartilhar por ser um interessante material de conscientização. Acesse o canal de vídeos do site www.santander.com.br/sustentabilidade.

Segue também o making off da montagem, que inclui as visitas dos atores aos empreendedores de São Luis.


   

E aqui algumas fotos dos bastidores: http://bit.ly/r6D4wX