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Além do picadeiro
Os palhaços que conhecemos já não
são mais os mesmos. Agora eles ocupam novos espaços, adquirem diversas formas e
conquistam outras plateias
Por Renata Bortoleto
A memória de infância de muita
gente guarda a imagem de um circo, aquele espaço de lona colorida, montado em
chão de terra batida, com cadeiras de plástico nem sempre em perfeito estado.
Um mestre de cerimônias de carola e paletó apresenta a seu respeitável público
as atrações da noite – trapezistas, malabaristas, mulher barbada, domador de
leões – e só no final chama ao palco o mais esperado dos personagens: o
palhaço.
Esta instigante figura está no
imaginário popular e na história de muitas culturas, mas há muito tempo ultrapassou
as portas do circo. Além de ruas, praças ou palcos de teatros, os palhaços
agora também estão em quartos de hospitais, mostrando que o riso pode ser
remédio poderoso, ou em uma partida de futebol composta por executivos de uma
multinacional.
Os espaços se expandiram, a relação
com a platéia tomou novas proporções e os próprios artistas se recriaram. Mas
há quem mantenha a tradição do circo e a figura do palhaço clássico, aquele com
rosto pintado de branco e figurino típico. Este arquétipo – tal qual o
conhecemos hoje – surgiu na Itália, no século 16, durante o movimento Commedia
Dell’arte, que sofreu influência dos antigos bobos da corte e explorou o uso
das máscaras. É representado no Brasil por figuras como Picolino, Piolim,
Carequinha e Arrelia, e continua vivo no trabalho de muitos outros artistas.
É o caso dos atores Raul Barreto e
Hugo Possolo (também dramaturgo), que há 20 anos comandam os Parlapatões, em São Paulo. O grupo começou com
números circenses nas ruas da capital – que logo se transformaram em
espetáculos – e desenvolveu sua pesquisa artística com base na junção do circo
com o teatro. Há quatro anos, os Parlapatões chegaram à Praça Roosevelt para
estabelecer sede própria, reforçando o movimento de revitalização dessa região
do centro da cidade. O grupo acumula na bagagem mais de 25 montagens, a maioria
preservando a tônica do palhaço clássico.
Os Parlapatões defendem que o papel
do palhaço é o de fazer rir, de divertir. Para isso, trabalham movimentos que
possam tirar o riso da platéia, cujas reações são previamente estudadas. Levam
da experiência nas ruas a busca pela quebra da chamada “quarta parede”, que no
espaço do teatro é a linha imaginária que separa o elenco do espectador,
propondo o diálogo direto. “Buscamos o olho no olho com o público, a interação
antes mesmo do espetáculo, já na porta da entrada”, conta Raul.
Assim, o grupo preserva o circo
como espaço popular de entretenimento, mantendo as piadas tradicionais, que
podem mudar conforme a peça, o público ou a cidade. E não abre mão do humor e
do trabalho estético. “O espetáculo tem que ser bonito, espalhafatoso”, defende
o ator.
Esse tal de clown
A linha artística conhecida por
clown é uma versão mais contemporânea do palhaço, mas bebe das mesmas fontes
históricas. Privilegia o estado natural do artista e a interferência de sua
personalidade na criação. É uma figura que pode fazer tanto rir quanto chorar,
muitas vezes usando elementos poéticos de expressão. Mais do que entreter,
expõe a fragilidade humana em sua forma de ver e ser relacionar com o mundo,
revelando até certa ingenuidade e lirismo. Na história do teatro mundial, o
Carlitos, personagem de Charles Chapin, continua sendo o maior expoente.
Esse é o clown que entra nos
quartos de hospitais onde estão as crianças assistidas pelos Doutores da
Alegria, grupo hoje presente em
São Paulo , Belo Horizonte e Recife. Em um ambiente de doença
e tristeza, os 47 artistas que compõem o elenco chegam para brincar e alegrar,
mas também para provocar reflexão, questionar valores e relativizar situações.
“É no hospital que a alegria acontece e inspira as pessoas à mudança”, afirma
Wellington Andrade, fundador do grupo. “Nosso trabalho é mudar o jeito de ver a
vida e ter um olhar mais amplo da saúde, que é a nossa relação com o mundo.”
Diante de uma criança ou da equipe
médica, os Doutores criam um espetáculo pessoal, exclusivo, construído junto
com público daquele momento, a partir da relação criada entre eles. Para
Wellington, o corpo a corpo é o encontro de uma nova criação artística. “Hoje,
essa troca me modifica e possivelmente modifica o outro. Nós temos, então, a
possibilidade de transformar”, diz.
Esse corpo a corpo também é coisa
séria para o pessoal do Jogando no Quintal. O grupo de artistas, com sede em São Paulo , também segue
a linha clown em seus espetáculos,
que têm a proposta de simular uma partida de futebol, com os palhaços divididos
em dois times, mais juiz e torcida formada pela platéia, além da música ao
vivo. As equipes fazem um jogo de improvisação a partir de um tema qualquer
sugerido pelo público e sempre procuram contar uma história. “Criamos uma
relação de intimidade para que todos se sintam parte da brincadeira, como em um
quintal mesmo”, explica César Gouveia, que começou este trabalho há nove anos,
em parceria com o ator Marcio Ballas. A turma – que fez 150 espetáculos nos
últimos três anos – estendeu sua atuação também para o universo das empresas.
No ambiente corporativo, o palhaço pode mostrar a força da relação e do
espírito de equipe.
Parece que estes especialistas
comungam da mesma opinião. Onde quer que ele esteja, sendo clown ou do circo, o palhaço ainda é um arquétipo importante da
sociedade. Quando um artista coloca seu nariz vermelho, tem autorização para
subverter a ordem, livre e anarquicamente, com o olhar de quem vê o mundo pela
primeira vez.
Mais informações:
Parlapatões: http://www.parlapatoes.com.br/
Doutores da Alegria: http://www.doutoresdaalegria.org.br/
Jogando no Quintal: http://www.jogandonoquintal.com.br/
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