domingo, 29 de janeiro de 2012

Nada nem nunca

É quase uma da manhã, e ela levanta-se, raro acontecer. A última vez que teve insônia faz cinco anos, talvez um pouco mais, e não gosta de se lembrar o porquê. Acordar no meio da noite é para quem tem o espírito fraco, afirma para si em meio às suas rezas, e irrita-se só de pensar na possibilidade de entrar para esta categoria de gente. Não, ela não, insônia nunca.

Quem passa na frente daquela casa e daquela existência pode achar fácil, mas não é. A perfeição é déspota cheia de vontades, vampira que suga o sangue da velha da mansão. Não parece. Fala-se na província que a dona da história nunca morrerá, mas ela tem certeza que sim, daqui a trinta anos, dormindo, sabe até o dia. Orgulha-se de sua boa saúde e memória - por estas e outras, é admirada na vizinhança. Queria também poder controlar o pensamento.

É comum vê-la com um pacote de compras na mão explicando ao padeiro, ao vendedor de flores, ao farmacêutico, às crianças, ao padre, aos funcionários, às paredes, aos seus santos e às suas vozes que estas são qualidades conquistadas numa vida inteira, com disciplina e esforço sem comparação. Quem gosta de abusos é porque não gosta da vida, afirma a quem estiver ouvindo. Na cabeça dela, na cabeça e no coração, na cabeça, no coração e na alma, ninguém deste mundo nem de qualquer outro está autorizado a deturpar esta ordem.

Peppe, o caseiro, é capaz de passar horas escutando estas sabedorias e palavras bem faladas desta senhora distinta com seu coque muito arrumado. Quando está na lida, fica procurando entender como pode um ser humano ser assim, tão bom. Como é que nunca se casou? Não, não teria sido possível, pensa. Naquelas bandas, não existia homem à altura, aqui só tem gente bruta que só entende de planta e bicho. Órfão desde pequeno, queria ele ter nascido seu filho, desejo íntimo que nunca contou nem para ela nem para ninguém. Também para quê? Mas sempre agradece a Deus pela oportunidade de ser seu empregado, justamente dela, da dama da mansão. A mesma que hoje não conseguiu dormir. 

O sono da dona é tão sistemático quanto suas atividades do dia. Dorme sempre às oito, depois de tomar uma leve sopa de tomates. Acorda às quatro, quando se arruma até que se pareça uma estátua de gesso. Cama feita. Refeições prontas. Proteínas e vitaminas. Digestão. Louça e roupa. Limpas e no lugar. O leite ao lado do pote de café ao lado do de açúcar. Cheiro de limpeza e tapetes ao sol, até nove e meia da manhã.  Zela pelas coisas, mesmo aquelas que ninguém vê. Tem duas empregadas dentro de casa, uma em cada turno. Sempre de olho em Peppe, funcionário da roça, de uma juventude e beleza que agridem. Casado, pai de três pestes perfeitas cor de ouro, encardidas e com olhos de anil. Ela, por vezes, evita sua presença. Em outras, precisa mais que tudo.

Hoje experimenta uma noite sem dormir. Época de colheita e de lua cheia, uma terça-feira. Roupa de cama limpa, recém-trocada. Está deitada nos lençóis de flores miúdas. Outras flores estampam a longa camisola de algodão que cobre o corpo pesado. É dominada pelo mesmo pensamento de antes, que de agora em diante nunca mais irá embora.                

Amanhã, ela ganhará uma noite bem dormida para na terceira viver tudo de novo, e assim para sempre será. O tempo se chamará loucura, as noites descerão para as manhãs que subirão para as tardes. No crepúsculo do meio-dia, até o fim de seus dias, ela chorará de pavor e desejo. Disciplina há de ser cansaço, um gosto de pó fará residência em seus lábios e em seus olhos. Nem chás, nem rezas, nem velas trarão sua rotina de volta,  nem mesmo a leal presença e devoção de seu amado Peppe. O viver terá outro nome e seguirá uma nova procissão, com uma cantoria mais alta, uma cruz mais pesada, em passos grandes e dolorosos, tão vivos quanto mortos. A vila da dona terá cada vez menos notícia, e as madrugadas, como crianças que pedem um novo brincar, hão de habitar novas formas.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Almodóvar é sempre Almodóvar?

Fui assistir "A Pele que Habito" pouco antes do Natal e posso afirmar que, até a semana passada, não tinha entendido o filme completamente. A história estava clara, era provocante, criativa, interessante: nesse ponto, sou mais uma das milhares de fãs que mais uma vez caiu nas graças do diretor, mas confesso que não havia captado o que ele queria, qual foi a dele nesta produção, que pele ele estava afim de habitar. 

Um amigo achou que ele passou um pouco do ponto no thriller. Concordei, tinha uma exibicionismo velado que dizia para a platéia: "olha como eu sei fazer suspense, olha como eu consigo surpreender, olha como eu posso fazer diferente". Mas também isso não me incomodou: pelo contrário, foi até o que me divertiu.

Mas este engasgo cuja razão eu não identificava continuou, e tenho certeza que para muita gente foi assim, porque não ouvi nenhuma opinião que não passasse de "que visceral", "que intenso", "que forte", "Almodóvar é Almodóvar". Bom, se é assim, a vida continua.

E continuou até semana passada, quando outro amigo inadvertidamente me ajudou a entender. Enquanto ele me contava suas impressões sobre o filme, consegui chegar na possível origem do meu incômodo. A tese era a seguinte: será que Almodóvar, pelo menos nesse filme, foi tão Almodóvar assim?

Para ser mais específica, estou falando da hierarquia de gêneros sobre a qual ele constrói seus personagens, geralmente mulheres-fortes-obstinadas-heroínas-vitimizadas, e os homens-escrotos-manipuladores-que-merecem-morrer-no-final. A impressão que dá é que essa marca (poderíamos chamar de discurso?) que encantou tanta gente em seus filmes mais genuínos, quando passou para um thriller pretensioso, simplesmente não colou.

E esta hipótese me faz pensar em outras duas. A primeira é se esta fórmula (as mulheres são legais, os homens não) já não está um pouco desgatada quando se olha para a contemporaneidade. Será que este conjunto de arquétipos, mitos e crenças ainda conversa com quem somos hoje, homens e mulheres? Não falo apenas sexuais, mas de mudanças em todos os sentidos (sociais, culturais, psíquicos, políticos, morais, espirituais e sexuais). Para melhor ou pior? Não sei, esta já é outra (e longa) discussão que não cabe aqui. Mas o fato é que estes extremos estão cada vez mais perto do centro. O bem já não é tão bom assim, e vice-versa. A linha está tênue demais para que a gente precise escolher um lado. Guerra dos sexos então, nem se fale. Esta sim fede a naftalina. 

Muito em função destes pensamentos, esta construção da relação entre vítima e carrasco, se não for roteiro de quadrinhos, é sempre muito relativa. Sim, o filme até tem um pouco desta estética comics (ok, entendido, divertido), mas também revela uma pretensão de estimular uma reflexão mais ampla, um pouco mais filosófica. Se foi esta da mulher como vítima de seu meio, ah não, de novo não, please. Será mesmo que nesta relação homem-mulher existe uma força tão arcaica assim que nunca há de mudar? Se existe, quero saber qual é.

Daí chego na segunda hipótese, que tem a ver com a imagem que ele construiu como o diretor que mais entende da alma feminina. Vários fatores determinaram sua fama: ele fez filmes incríveis (e com mulheres poderosas como Penélope Cruz), tem este jeito de gênio maluco do circuito alternativo e é gay (teoricamente, ninguém melhor que ele para entender desta tal alma feminina). Funcionou. Até Angelina Jolie fez "a desesperada" na frente das câmeras para conseguir um papel seu. Justo ela, tão acostumada a ganhar. Ele bem que poderia responder: "se quer entrar para meu time, vai ter que bancar a coitada".


Piadinhas infames à parte, minha dúvida é. Se nos ama tanto, por que condenou o herói da história a viver aprisionado no corpo de uma mulher? Soou como punição máxima de uma existência, maior que a morte. Foi isso mesmo ou será que estou louca? Eu não quero que me expliquem o roteiro, só quero saber que força pulsante fez Almodóvar chegar a ele. 

Não deu para saber direito qual foi. Só posso dizer que "A Pele que Habito" tem cheiro de raiva embutida, e dessa vez não é pelos homens. Se não é raiva, pode ser que ele tenha se cansado de falar deste universo (que ele próprio criou), e acabou saindo assim.

Você que assistiu, feche os olhos, invada o filme e tire a máscara do Antônio Bandeiras. É provável que encontre ali Almodóvar e seu alter ego masculino, tão controlador quanto o de seus personagens. Será que não? Se eu estiver certa, tudo bem. Afinal, que mal há nisso?

***

Para quem ainda não viu, aqui está o trailer.
Vale a pena.
Almodóvar é sempre Almodóvar!



Esta história toda me fez pensar nas músicas do Chico Buarque. Muita gente fala que ele entende a alma feminina, mas eu não acho não. As letras até saem da boca "mulherzinha apaixonada", mas a alma mesmo é do bom e velho "cafa". Pode prestar atenção.

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Também fico pensando na definição de alma feminina. Alguém tem? Coloquei no Google, não saiu no Wiki, é sinal que não existe. :-)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Poeta da sétima arte

Só tive contato com a obra do cineasta russo Andrei Tarkovsky no ano passado. Quando isso aconteceu, ele imediatamente virou alvo da minha obsessão. Descobri que sempre foi uma referência mundial no cinema (matéria obrigatória nas universidades) e fonte inspiradora de cineastas como Lars Von Trier, outro diretor por quem sou muito apaixonada.

Ao contrário do que seria natural, li "Esculpir o Tempo" antes de assistir aos filmes, livro que também pode ser considerado uma biografia, só que menos pessoal e mais artística. Encontrei ali sua visão da arte, sua compreensão do papel do cinema (e do cineasta), sua trajetória de vida, o processo de trabalho de seus filmes, histórias sobre a rica e amorosa troca com seu público, da relação complicada com os críticos e do compromisso de fé que, na sua opinião, o artista deve assumir com a humanidade, de uma maneira divina e transcendente, como ele mesmo fez.


"O gênio não se revela na perfeição absoluta de uma obra, mas sim na absoluta fidelidade a si próprio, no compromisso com sua própria paixão".

Em seguida, assisti "O Espelho" e fiquei absolutamente transtornada, mas sem entender direito porquê, pelo menos na primeira vez. A câmera é o olhar da criança que ele foi em sua infância na Rússia, um registro tão verdadeiro que somos capazes de sentir o cheiro da cozinha da mãe e o vento gelado da tarde que bate no rosto quando se tem seis anos idade e ainda não se consegue apreender a lógica do mundo. Esta nostalgia (sentimento que inclusive dá nome a outro de seus importantes filmes) é uma marca constante em sua obra.



Fora da caixa da narrativa clássica, ele transforma estados de espíritos em imagens poéticas de imensa beleza estética, como se cada enquadramento fosse uma pintura. E, por meio desta voz memorialista, apresenta-nos os aspectos mais inexoráveis da existência humana, como o passar do tempo, a força da ancestralidade e os laços que nos prendem às origens.

De alguma forma, ele resumiu ali um pouco do que, de maneira utópica, eu gostaria de ser capaz fazer com o conteúdo da experiência humana, sem frescuras e com verdade. Posso dizer que explicou algo sobre mim mesma que, sozinha, eu jamais conseguiria entender.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O codinome da morte

"Sete", este é o nome da primeira peça da dramaturga Dione Carlos, o tal número cabalístico que, por si só, já chama a atenção, aguça a curiosidade, mas que é só o começo da viagem. Daí vem o texto. O bom fruto de sua vivência estudando a "dramaturgia do transumano" de Roberto Alvim, que sabiamente deu palco a ela no Club Noir.

Dione problematiza o sujeito. Não há personagens, mas há muitos ao mesmo tempo. O general e o médico do agora tomam o lugar da mãe e a professora da memória. São tantos e também um só, um único indivíduo que muda de cara dependendo de sua posição na órbita, da distância que está em relação ao sol, explicaria a autora.

Também não há narrativa linear, mas fragmentos de experiências humanas numa guerra. No caos artisticamente organizado que criou para si, e para todos, a autora encontra a sua voz, enquanto nós, espectadores, nos enxergamos ali, no palco, vivendo uma trajetória universal. O espetáculo conversa com cada um de nós porque conversa com toda a humanidade - a sensação de que "isso tem a ver comigo" é atualizada a cada cena, a cada fala, a cada intervenção. E nosso cérebro, coitado, tão acostumado a começos, meios e fins, fica prazerosamente clamando por satisfação, uma dor desconhecida que se mistura ao gozo.

Ah, sim. A história? Você quer saber qual é a história. Bom, não sou eu que vou contar. Responder a esta pergunta seria destruir a dramaturgia e o olhar de cada um sobre ela. É como inferir num paladar que não é meu. "Sete" é uma obra aberta num sistema fechado, redondo. Para cada pessoa, bate diferente, pega de um jeito. É peça para ir lá e se servir.

Daria pra dizer que é sobre uma mulher (Sete?) num contexto de guerra, da opressão do homem sobre o homem, dos vários lados que existem numa situação limite. Porém, esta conclusão (uma entre várias possíveis) reduziria a proposta a muito menos do que ela é. Estou falando de um texto construído a partir de metáforas que proporcionam a ampliação da experiência, uma vez que esta guerra tanto poderia ser real quanto estar dentro de nós.

O texto ganha potência na direção da atriz Juliana Galdino, que, como sempre, extraiu o melhor do elenco formado na Paralela Noir, a oficina de atuação da casa. Mais uma vez, os atores e atrizes apresentam a mesma força em sua interpretação. Diferente da maioria das peças em cartaz em São Paulo, ninguém fica perdido em cena sem saber o que dar nem o que fazer. E a luz - que no Noir é tão importante quanto texto, direção e atuação - é bonita e surpreende.

"Sete" deve voltar logo mais.  A reestreia está prevista para o dia 12 de janeiro. É bom acompanhar lá no site (www.ciaclubnoir.com.br) e não deixar de ir.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Ação institucional com teatro

O espetáculo "A Colcha de Sonhos" foi uma iniciativa do Santander que tive a honra de participar como dramaturga entre 2010 e 2011. Trabalhei em dupla com a atriz Joana Pegorari na concepção do roteiro e, na produção, contei com uma equipe incrível de atores, músicos, produtores, diretor e cenógrafo, todos amigos e artistas talentosos.

O projeto tinha como objetivo dialogar com microempresários de regiões carentes do país sobre temas como sustentabilidade, ecoeficiência, autoestima, educação financeira, empreendedorismo e cooperação. A ideia era gerar reflexão sobre como atitudes responsáveis com as pessoas e com o meio ambiente podem trazer resultados positivos para os negócios e equilíbrio na vida pessoal.

Criamos a história de Tonico, um menino sonhador que conhece uma costureira muito especial, sua nova vizinha. A partir desta amizade, ele passa a ter uma nova visão de mundo e a promover a transformação da realidade de todos a seu redor, sobretudo de seu pai, um empreendedor que está com dificuldades na administração de sua mercearia.

Por ser uma peça de caráter educativo, foi preciso atenção no formato: por isso, adotamos uma linguagem clara e, ao mesmo tempo, divertida e criamos uma farsa (bem ao estilo "A Grande Família"), construída com elementos de humor, interação com o público, romance e realismo fantástico (por exemplo, a história tem um cachorro que fala).

Parte da caracterização dos personagens e do tratamento dos temas foi desenvolvida com base nas conversas que Joana e eu tivemos com microempreendedores da comunidade de Paraisópolis. Partimos das experiências deles para que a peça fosse o mais crível possível.

Foram realizadas três temporadas (uma em São Luis do Maranhão e duas em São Paulo), e o espetáculo ainda virou websérie, que está disponível a quem se interessar. Sou suspeita, mas mesmo assim posso dizer que vale muito a pena assistir e compartilhar por ser um interessante material de conscientização. Acesse o canal de vídeos do site www.santander.com.br/sustentabilidade.

Segue também o making off da montagem, que inclui as visitas dos atores aos empreendedores de São Luis.


   

E aqui algumas fotos dos bastidores: http://bit.ly/r6D4wX