quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Desconhecida

Por Renata Bortoleto

Seis da tarde. Hora de ir para o hospital onde você me espera, desacordada. Um caminho que eu não conhecia até o dia que você seguiu naquela maca, seu corpo ferido. Desde então, como um viciado em busca de droga, todos os dias preciso ouvir o silêncio profundo que substituiu sua voz. Arrumo minhas coisas e sigo a nova rotina. Hoje é o décimo terceiro dia.

Subo num ônibus da periferia onde moro e me jogo num banco qualquer. Não tenho forças para olhar pra as pessoas ao meu lado, atrás de mim, na minha frente... São apenas rostos, e nenhum deles me faz diferença. Cheguei no meu limite, eu poderia matar ou morrer agora. Sinto que não estou aqui, mas também não estou em nenhum lugar. Bate o cansaço, nunca mais consegui dormir. Daria as minhas poucas moedas para receber a garantia que uma destas vidas, passageiros como eu, é mais desgraçada que a minha. Ilusão. Ao levantar, vejo que estou só. Desço.

Chego, e o pesadelo recomeça. Procuro o mesmo lugar do saguão de espera, minha superstição. Pela segunda vez no dia, estou prostrado num banco de plástico esperando o impossível acontecer. Abro as pernas, curvo as costas, coloco os cotovelos nos joelhos e aperto as mãos em punho nos ouvidos. Não termino a engenharia, vem a enfermeira e anuncia, pode entrar, senhor.

Ando sem pressa adiando o encontro, o nosso. Passo por sete quartos. O rapaz do primeiro, que nunca mais vai andar, gosta de conversar com a velha do sexto, que morre de velhice. O terceiro e o quinto estão desocupados. Quando lembro disso, falta só mais um passo. Pronto.

- Posso entrar, meu anjo?

A pergunta obviamente não é respondida, e o apelido ridículo revela uma intimidade que nunca existiu, frágeis técnicas criadas pela minha cabeça para me impedir de enlouquecer. Aproximo-me da cama que mais lembra uma mortalha. Minhas mãos acariciam seu rosto, que está sempre virado para o outro lado, como quem espera um pouco de calor. Meus dedos passeiam dos olhos à boca, gesto simples, não fosse ele responsável por detonar em mim dúvidas que me atormentam há quase duas semanas.

Seu peito sobe e desce com dificuldade, você guerreia para ficar ou está prestes a ir, não sei. Vejo um fiapo de respiração, única trama que nos prende, os mesmos fios que se cruzaram naquela noite que nos conhecemos e você, intensa, jorrava vida por todos os poros.

Aceita um drink, foi o convite corajoso que eu, sendo quem sou, jamais faria a alguém. Mas ele veio de você. E justo para mim, que não tenho nada a oferecer, sou só um feio moleque pobre. Minhas pernas tremiam, e eu mal conseguia articular as palavras. Sim, aceito, respondi, já pensando em tudo o que poderia acontecer. Parecia que aquilo não era comigo.

As mãos brancas, o esmalte escuro, os muitos anéis que enfeitavam seus dedos me entregaram a bebida e o começo da nossa história, esta. Você se aproximou, senti o ar quente da sua boca misturado ao cheiro doce que vinha do pescoço. Eu ali, acuado e excitado como uma alegre presa. Em três horas e trinta e sete minutos, mais sete cervejas e a conta, seu corpo já se contorcia de prazer. Este que, coberto e quase inerte, segue rigorosamente procedimentos médicos.

- Com licença, senhor. Pode sair um instante? Preciso trocar os curativos.

A imagem da mulher linda e exótica, de pele branca e cabelos pretos, durou exatamente da bebida ao gozo. Depois que trepamos, adormeci e tive um sono cansado: sonhei que você pisava no meu estômago e na minha cara, dançando e rindo como um bruxa. Acordei de sopetão e você estava em cima de mim, mas sentada, nua e como uma estátua, naquela mesma posição de quando transamos: a impressão que tive é que você não saiu dali durante aquele tempo. Sem explicação, também não sentia direito seu peso em mim. O quarto todo um breu, não enxergava nem o contorno do seu corpo. Tudo bem, você me perguntou, com um tom estranho na voz. Sim, respondi, foi bom demais, só estou muito cansado. Fazia calor, uma poça de suor inundava minhas costas. Coloquei a mão na sua cintura e senti que também estava ensopada. Pensei no banho mas, àquela altura, o cansaço era maior. Voltei a dormir. Depois de algumas horas, a luz do dia foi chegando junto com a da visão e a da consciência, elas iluminavam o ambiente, projetando este nosso destino. Procurei você e achei, seu corpo todo aberto por uma navalha. Barriga, pernas, peitos, pescoço, braços, costas, boceta e também o pulso, um só estilhaço. Você, que ainda tinha nas mãos aquela lâmina cujo aço brilhava à luz do sol que nascia, dormia um sono profundo em cima do próprio sangue. Antes do meu desespero, ainda tive tempo de pensar, ela desistiu de cortar o próprio rosto, este mesmo que agora descansa, virado para o outro lado.

4 comentários:

Alexandre Garcia da Silva disse...

Renata, o que mais me magnetiza no seu conto? A linguagem que consegue amalgamar brutalidade e delicadeza? Ou a riqueza de sentimentos e implicações que o seu texto, mesmo conciso, tem o dom de insinuar?
Penso na mágica habilidade que a construção de um belo conto exige. Espero que você escreva mais.

Renata Bortoleto disse...

Oi, Alexandre.
Fico muito feliz que tenha gostado do conto. E mais feliz ainda por saber como ele reverberou em você. Certamente outros virão. Um grande abraço e feliz ano novo.

Alexandre Garcia da Silva disse...

Aguardo-os ansiosamente. E espero que daqui para frente possamos trocar muitas ideias sobre essa arte tão apaixonante que é a Literatura (fiquei sabendo do seu trabalho através dum amigo em comum, o Leandro).
Um grande abraço para você também e um 2012 pleno de realizações.

Renata Bortoleto disse...

Obrigada, Alexandre. Sim, podemos trocar ideias sobre literatura. Será um prazer enorme. ;-) Um grande abraço.