quinta-feira, 22 de março de 2012

Guichê 57

 - Não, não é aquela ali não, menina. É outra. Ela ainda não chegou. Entra às nove, mas é a única pessoa que o chefe deixa chegar às dez. Primeiro porque ela trabalha aqui há vinte e cinco anos, segundo porque da semana que vem não passa. Muito dedicada ela, sabe. Uma boa senhora, tem marido, é mulher direita. Aqui na repartição nem olhar para o lado ela olha. A filha está grávida, esperando o primeiro netinho dela, sabe, uma judiação. Imagine quando a criança souber que a vó morreu desse jeito? Coitada dela, menina, nem poder conhecer o netinho ela vai. Ou netinha. Uma boa senhora, sabe, nem de fofoca ela é, coitada. Cruz credo.

A mulher entra com ar aparentemente saudável, dando bom dia a todos.

- Reparou que agora ela usa batom, rapá. Nunca vi a velha usando batom, vermelho encarnado ainda por cima, coisa de rapariga. E agora anda de salto alto. E para trabalhar aqui lá precisa andar de salto alto? Só porque sabe que vai morrer está toda toda, acha que só existe ela na face da Terra. Quero ver cair uma hora dessas, torcer o tornozelo. Eu é que não vou socorrer. Sim, porque sempre que acontece essas desgraceiras aqui no departamento é para mim que o chefe olha - "corre com fulano pra o hospital, põe pedra de gelo na cabeça do ciclano". Deus que me perdoe, mas tenho para mim que Ele sabe o que faz. Se toda mulher que descobre que vai morrer resolver virar um troço desses, é melhor ir logo de uma vez.

Ela finalmente chega na sua mesa de trabalho, o guichê 57. Trabalhou durante 23 anos no 31, mas pediu para mudar de baia porque a sua era muito perto do banheiro masculino, não conseguia suportar aquele cheiro. Sua transferência demorou dois anos para sair, a repartição estava com outras prioridades, mas o importante é que seu pedido foi atendido, depois de ter sido protocolado por sete instâncias competentes. Afinal, ela merece.

Aparentemente a rotina continua a mesma para quem trabalha ali. Nunca muda - nem para quem viverá mais 50 anos nem para quem esta prestes a morrer. E para ela, que se enquadra na segunda categoria, não é diferente. Apesar disso, os ânimos estão, sim, exaltados, os estômagos revirados e as cabeças confusas. Dá quase para tocar o peso do ar parado, este mesmo que abafa a suposta harmonia instaurada no departamento.

O fatídico dia chega e ela também, usando roupas confortáveis e tênis, algo fora de cogitação em tempos normais. Entra pela mesma porta que atravessa há 25 anos, todas as manhãs, sendo hoje a última. Posiciona-se num dos cantos da repartição, de frente e ao fundo para quem entra. Quase nunca passa por lá, mas sabe que é ali que deve ficar.

- Meu coração está que não pára de bater, menina. Ponha a mão aqui...

No total são vinte e três colegas de trabalho que estão ansiosos pelo início do espetáculo. Um respira fundo, toma coragem e vai pedir ao chefe para liberá-los por trinta minutos. Não podem perder aquilo por nada. Mal sabem que também ele tem contado os dias no calendário, como criança em véspera de aniversário, e que esta autorização está dada há muito tempo, carimbada e protocolada pelas sete instâncias competentes.

Os marcadores sonoros param. As pessoas que esperam por atendimento há mais de uma hora são amorosamente encaminhadas até uma sala de espera confortável, com sofá, água, ventilação e algumas bolachas de maisena. Comem feito robôs.

- Acho que ainda não começou. Faz cinco minutos que a vi andando para lá e para cá. Ai se ela estiver de palhaçada com a nossa cara. Você trouxe aquela pipoca doce para gente?

Antes da resposta, ouve-se um pequeno estrondo, um barulho pouco comum que vem da terra. O chão balança, como no início de um terremoto, para pavor geral, mas logo pára. Todos olham para ela, e ela olha para todos. Estão assustados.

Como quem clama por socorro, pede um copo d'água. Alguém corre para pegar, e seu coração começa a disparar. Fecha os olhos e tenta respirar tranquila, mas não consegue. Abre os olhos de novo para ver ser a água já chegou. Já. Pega o copo, que escorrega pelo suor de suas mãos e se espatifa no chão para onde seguem as cabeças de seus comiserados espectadores. Na fração deste segundo, soltam um resmungo de pesar, num grande coro.

Os cacos são rapidamente recolhidos, e o segundo copo chega na urgência dos angustiados. Ela bebe numa tacada, como quem busca retomar as forças e o orgulho perdidos. Percebe que seus pés já estão colados, não consegue dar mais nenhum passo a frente, e as lágrimas começam a surgir. Uma moça loira de óculos não resiste e também chora.

Uma voz vinda da plateia pergunta se ela precisa de alguma coisa, ela responde que não com a cabeça, já que a voz está embargada como quem guarda o resto de energia para os momentos finais. As lágrimas são mais grossas agora. Sente um primeiro cansaço muscular que sobe desde o tornozelo. Senta-se de cócoras, não adianta, o que quer fazer é impossível para o corpo humano. As dores vão, aos poucos, ganhando espaço, como invasores tomando território numa guerra. Nas juntas e nos músculos, é pior. Tenta encostar-se na parede, mas está distante dela. Abaixa a cabeça e vê que seus pés já são dois blocos de concreto.

- Pai Nosso que estais no céu, santificado seja Vosso nome, perdoais as nossas ofensas...

"Não fiquem com pena de mim". Todos concordam sem saber porque concordam, sem entender qual teria sido a culpa daquela mulher, o que ela fez para merecer. Mas ninguém ousa perguntar nada. Ninguém ousa falar nada. A enchente de cimento inunda seu joelho.

- Desculpa se algum dia falei mal da senhora...

Rende-se a fofoqueira, num vômito de coragem.

- Qual será mesmo o nome do seu netinho?

Tenta a outra, buscando assunto agradável que surte efeito contrário. Ambas desabam num pranto inconsolável. Ela lembra daquilo que não será vivido, do que poderia ter sido e do que nunca virá a ser. Já com a cintura transformada num pequeno muro, responde: "José".  

- Quero que saiba que somos gratos aos seus préstimos em todos estes anos. A senhora sempre foi muito importante para nós, para nosso trabalho...

O discurso do chefe, que soaria falso em qualquer outro momento, é interrompido pela própria emoção. Ele corre para abraçá-la, em seu primeiro gesto de carinho em todos estes anos. Atira-se no colo dela como se este ainda fosse de carne e osso, mas encontra o busto petrificado de uma mulher ainda em vida. Ela corresponde, tentando descansar sua cabeça - o único membro que ainda se movimenta - nos ombros do homem.

- Obrigada. Não se preocupe. Ficarei bem.

A processo acaba com grande comoção. Os monitores são ligados, e quem aguardava para ser atendido volta ao salão de espera. Quinze minutos depois, as colegas já haviam recolhido, com a ajuda de uma pá e de uma vassoura, todo aquele entulho, colocando-o num grande saco de plástico preto que, um dia depois, seguiria viagem em cima de um caminhão.

4 comentários:

Anônimo disse...

Poxa, Renata, de todos os que eu li, até agora, esse conto é o melhor mas...
Confesso que fiquei muuuuito incomodado!
Não é brincadeira, não! A sensação de desconforto foi bem vívida!
(É estranha, sórdida e fascinante essa relação sadomasoquista entre o artista e seu público, hein? Aquele sofre; transforma, por meio duma intraduzível alquimia, o horrível em beleza; e oferta essa beleza horripilante a pessoas sequiosas por sofrer, como se fosse o próprio, o sofrer alheio que na verdade também é o próprio)
A próxima vez em que a gente se encontrar, gostaria de saber o quê, exatamente, te levou a escrevê-lo.

Alexandre

Renata Bortoleto disse...

Oi, Alê, querido!
Sempre que publico um novo texto, fico pensando: "nossa, será que o Alê vai gostar?". E que bom que gostou. E que bom que ficou incomodado (este era o objetivo). :-) O evento conto quando nos encontrarmos, mas posso adiantar que é algo bem banal que acontece com todo mundo nestes órgãos públicos. A minha experiência me colocou em contato com o que havia de mais monstruoso em mim, assim resolvi escrever este conto. :-) Obrigada mais uma vez, beijo grande, Alê.

Anônimo disse...

Renata, Renata... do latim, a que nasceu novamente. O nome está cheio de vida, mas o talento literário está obcecado pela ideia de morte. Em todos os contos que li no seu blog, a presença da indesejada das gentes!
Se você não tiver compromisso, eu estava pensando que a gente poderia se ver no próximo domingo, dia 15, no café do Espaço Unibanco. Que tal?

Renata Bortoleto disse...

Acho que a morte é um tema bonito e sempre presente em qualquer forma de arte. A eminência dela deixa a vida mais pulsante. :-) Alê. Vamos esperar o Júlio voltar de Natal que combinamos um café com ele e o Lê também. Estou com saudades deste trio. Beijos, querido, e obrigada pelas sensíveis contribuições.