Os gritos de guerra da sua escola
agora davam lugar aos ressoares das televisões distantes daquela Quarta-Feira
de Cinzas, dia de apuração. Enquanto ouvia o anúncio de cada nota, continuava
no seu ato redentor de limpar aquele espaço onde jamais entraria novamente.
Consumia aquele momento como nenhum outro em sua vida, como se quisesse guardar
na pele e na memória aqueles que tinham sido seus dias de glória.
- Vá embora, minha filha. É o
melhor que você faz.
O conselho não saía do pensamento.
Ele veio, no dia anterior, da própria Dona Zizinha, a baiana mais querida da
agremiação. Pouco tempo depois do fim do desfile, ainda com as fantasias no
corpo, conseguiram achar um lugar na dispersão onde ninguém pudesse vê-las, bem
atrás de um velho banheiro desativado. Sentarem-se no chão de asfalto quente da
madrugada, onde a menina, com o rosto molhado, manchado pela maquiagem dos
olhos, pôde deitar a cabeça em cima do enorme vestido branco da velha
sambista.
As palavras saíram engasgadas do
coração doído daquela mãe postiça que via sua menina pela última vez. As duas
aos prantos, num abraço apertado e desesperado, cheio de uma saudade
antecipada.
- Como vou ficar sem você, mãezinha?
- Que mamãe
Oxum te projeta, filha minha.
E era ele, o
coração, que pedia para ficar. Ele e os olhos verdes do diretor da escola, o
moreno Ezequiel, também conhecido como Gavião. O desejo violento que sentiam um
pelo outro ganhou um impulso ainda maior no começo dos ensaios daquele ano,
quando Diana já havia deixado para trás a última sombra de sua meninice. Uma
paixão que os invadiu sem nenhum espaço para qualquer tentativa de
racionalidade e bom senso e agora estava prestes a arruinar três vidas.
A terceira delas,
e mais afetada, era a de Deusa, casada com Ezequiel há vinte anos, mãe de seus
três filhos e também a mulher mais respeitada da comunidade. Tinha uns quarenta
e poucos anos e era do tipo guerreira, cuidadora, que entra em briga para
defender família, amigos e qualquer pessoa de bem que frequentasse o barracão.
As traições de
Ezequiel trataram de acabar com o amor próprio de Deusa, que com ou sem
carnaval estava sempre a seu lado, e também minar a moral da escola que, neste
ano, estava a um passo do rebaixamento. Como se uma névoa de raiva e rancor
tivesse baixado naquele lugar que sempre foi de alegria.
E lá no fundo de
seu sentimento de mulher, a inveja de quem já não gozava mais daquela maldita
beleza perfeita de quem tem vinte e três anos de idade, de quem por onde passa
irradia... A inveja que vinha daquela mulher, ainda bonita, que um dia já foi a
mais imortal das passistas, de quem já foi princesa, de quem já foi rainha.
- Você também vai envelhecer.
Como quem ainda
estava longe de saber o que era isso, Diana lavou as mãos no lavatório do
barracão, pegou sua bolsa numa das cadeiras de plástico e, ao sair, percebeu
que Gavião estava ali olhando para ela, talvez não por muito tempo, mas há
alguns minutos. Os mesmos olhos apaixonados que não se esfriaram diante da sua
realidade, que foi sua um dia e agora se apresentava como nova.
Não correram um
para o outro, não se abraçaram, não repetiram nada. Num gesto delicado, cheio
de respeito e gratidão, ela abaixou a cabeça, como quem salda e despede-se de
um bamba do samba.
***
(Este conto terá uma nova versão um dia).
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