ELE (alegre, enquanto se senta) –
Não entendi... Hoje você não pediu café?
ELA (rindo da surpresa e da pergunta
inesperada) – É bom diminuir a cafeína...
ELE – Eu sabia que você ia responder
isso...
ELA – Eu sabia que você responder...
isso...
Os dois riem juntos.
Ele pega o cardápio e passa as folhas rapidamente para ir direto nas bebidas.
ELE (olhando o cardápio, pensativo)
– Hummm... Vamos ver o que vou beber...
ELA – Soda italiana...
ELE (tirando o cardápio do rosto)
– O que disse?
ELA – Soda italiana... Eu disse soda
italiana... Ou um frascati, se preferir... Hoje está um dia perfeito para um
frascati...
ELE – Por que você está me sugerindo
isso?
ELA (achando graça) – Porque
você gosta e porque acho que faz tempo que não bebe... Só por isso...
ELE – Nunca foi tão fácil... (Para o
garçom, que está próximo) – Pode trazer para mim uma soda italiana, por
favor?
O garçom responde sim
senhor e vai buscar a bebida.
ELE (dobrando cuidadosamente as
mangas da camisa) – Agora sim cumpri o que prometi... Vou pagar minha
dívida por ter ficado tantos anos fora... E por ter te abandonado (ri para
ela, que corresponde). Já comprei nossas passagens... A gente embarca no
dia 16 de julho e, se você quiser, podemos ficar lá até dois meses. Só depende
de você.
ELA – Eu nem acredito que esse dia
chegou. A gente vai poder visitar todos aqueles lugares, aqueles museus,
aquelas praças... Amanhã mesmo vou comprar vários guias de viagem e fazer um
roteiro bem detalhado para gente, dia a dia. O que será que eu preciso levar?
ELE – Nada de muito pesado. Não leve
muita roupa, só o suficiente. Depois eu posso até fazer uma listinha para você.
O que a gente não pode é ficar carregando peso para lá e para cá. Reservei
nossos quartos num ótimo hotel muito no centro, bem próximo de tudo. Chegando
lá, a gente aluga um carro.
ELA – Eu acho que não tenho metade do
seu talento para fazer este tipo de coisa?
O garçom pede licença
e serve a soda. O jovem agradece e bebe um gole, porque o copo está
transbordando. O garçom saí.
ELE – Como assim?
ELA – Ah... Planejar... Pensar em tudo. Você não deixa
escapar nada...
ELE – Aprendi com você. E você sabe
muito bem disso. Pára com isso...
Ambos dão um gole em
suas bebidas. Ela pára seu gole no meio lembrando de alguma coisa na bolsa...
ELA – Ah, não posso esquecer... Trouxe
seus livros...
Vai pegando os livros
na bolsa e os entrega a ele.
ELE – Nossa... Nem lembrava desses
livros...
ELA – É, pois é... Para você ver que já
tava na hora de devolver... Já vou te dizer que um eu não li... Achei chato...
Ou não estava inspirada... Não sei... Mas de qualquer forma obrigada... Os
outros dois foram escolhidos a dedo...
ELE – Eu tinha certeza que você ia
gostar...
A conversa é
interrompida pelo barulho de um caminhão que entrega de mercadorias para o
estabelecimento onde estão. Ele é estacionado bem na frente do casal, dele saí
muita fumaça do escapamento, que vai para o rosto dos dois. Com um ajudante, o
motorista deixa o motor ligado, desce do caminhão, abre a traseira a parte de
trás, retira pacotes de soda italiana e entregam ao garçom de antes, junto um
nota fiscal. Porém, não voltam para o caminhão, ficam conversando demoradamente
com o atendente. Mesmo incomodado, o casal não muda de lugar.
ELA (falando mais alto do que o
normal) – O que foi que você disse?
ELE (idem) – Eu queria te falar
que, se você quiser, eu tenho uma biblioteca lá em casa...
ELA (rindo dele) – Você não tem
memória mesmo, hein, seu maluco! O que tem de bom para planejar as coisas tem
que esquecido... Foi eu que te ajudei a montar a biblioteca, não lembra? Fui
que eu te ajudei...
ELE (rindo dele mesmo) – É
mesmo... Como é que eu pude esquecer... Você deve achar que sou um mal
agradecido...
ELA – É lógico que não... Tudo o que
fiz foi por amor...
ELE – O que?
ELA – O que fiz foi por amor... Este
nunca faltou para você...
Pelo barulho, ele não
ouve o que ela diz, mas finge que sim para não aborrecê-la. Nesse momento, pára
um carro grande bem atrás do caminhão, quase cola nele, e começa a buzinar sem
parar. O motorista e o ajudante continuam conversando com o garçom, não
manifestam nenhuma reação.
ELE (quase gritando) – Eu queria
te pedir um favor...
ELA (idem) – O que?
ELE – Eu queria te pedir um favor...
ELA – Claro, fala...
O carro começa a dar
ré e a bater no caminhão. Sem parar. Dar ré e bater. Dar ré e bater.
ELE – Você pode me buscar na escola
mais cedo hoje?
ELA – O que?
ELE – Eu queria saber se você pode me
buscar na escola mais cedo hoje... A professora vai faltar... Não vai ter
substituta... E a servente não é muito legal, sabe? Na verdade na verdade, ela
é muito ruim... Ela bate nas crianças... Tenho medo de ficar sozinho com ela...
Tenho medo de ficar sozinho... Tenho medo de ficar...
ELA – Não.
ELE – O que disse?
ELA – Eu disse que não.
ELE – O que disse?
ELA – Eu disse que não. Talvez você não
esteja lá.
Uma moça de uns 16
anos – que segura um copo de plástico com água numa mão e um comprimido na
outra – acorda uma velha doente, que toma um leve susto. Desperta suada e um
pouco agitada. Ambas são pobres.
MENINA (ajudando a velha a se sentar e
se acomodar no travesseiro) – Desculpe te acordar... É hora do seu
remédio...
A velha não responde,
senta-se na cama, pega o copo, toma o comprimido e bebe a água. Devolve o copo
para a menina.
VELHA – Eu sonhei com meu filho...
MENINA – Foi sonho mesmo, porque a senhora
não tem filho...
VELHA – Eu tenho.
MENINA – Tem?
VELHA – Eu sempre sonho com ele... Às
vezes isso cansa... Mas no fundo eu gosto muito... Me conforta... Engravidei
dois anos depois que cheguei em São Paulo... Eu me aposentei como doméstica na
casa de gente rica, mas antes disso eu era puta...
MENINA (assustada) – Como?
VELHA – É isso que você ouviu... Eu era
puta... Nunca viu uma puta? Então... Eu era uma... Engravidei de um marginal...
Tirei... Tirei porque não tinha condições de ter um bebê... Mal conseguia me
sustentar... Aliás, não consigo até hoje com essa miséria de aposentadoria...
Você sabe melhor que eu... Nunca consegui...
MENINA – Nossa, como a senhora teve
coragem? Isso não é coisa de Deus?
VELHA – Eu não sei que cara tem o seu
Deus...
MENINA – E o sonho?
VELHA – Que sonho?
MENINA – O sonho que a senhora acabou de
sonhar?
VELHA – Ah, minha filha... Esse foi só
mais um... Eu sonho com ele todo dia... Cada dia num lugar... E todo dia a
gente tá feliz...
MENINA (fazendo sinal) – Cruz
credo... (Longa pausa) E o pai dele?
VELHA – Morreu...
MENINA – Morreu?
VELHA – Morreu...
MENINA – Como?
VELHA – Mataram ele. Ele não pagou
dinheiro de droga.
MENINA – Ah...
Longa pausa.
MENINA – E com ele? A senhora já sonhou?
VELHA – Não... Nunca...
MENINA – A senhora tá com fome?
VELHA – Não.
MENINA – E se...
VELHA – Eu fui com uma amiga tirar o
menino... Ela era puta também... O lugar era sujo... Mais sujo que onde eu
morava... Mais sujo do que aqueles hoteis que eu fazia programa... Eu lembro da
moça... Uma moça bonita... Loira, olho claro... Também novinha, que nem você,
pouquinho mais velha... Estranho num era uma puta num lugar daquele... Estranho
era uma moça bonita daquela num lugar daquele... O negócio em si até que foi
rápido... Eu só lembro do barulho de um peso no cesto de lixo... E da voz
delicada da moça bonita... Fique calma, você não é a primeira nem vai ser a
última... Relaxe... Você sabia que a maioria das mulheres faz isso, não sabia?
Eu mesma tenho um monte de amiga que já fez... Olha... Tente pensar numa coisa
boa... Não vai demorar muito, eu prometo... Logo logo você já estará em casa... Você é amiga dela,
não é? Sou sim... Se quiser, pode segurar na mão dela... Eu já libero vocês...
Velha e menina em
silêncio, cúmplices.
VELHA – O que você ia me falar?
MENINA – Só perguntei se você estava com
fome...
VELHA – Sim, estou com fome... Você pode
esquentar um pouco de sopa?