Um amigo achou que ele passou um pouco do ponto no thriller. Concordei, tinha uma exibicionismo velado que dizia para a platéia: "olha como eu sei fazer suspense, olha como eu consigo surpreender, olha como eu posso fazer diferente". Mas também isso não me incomodou: pelo contrário, foi até o que me divertiu.
Mas este engasgo cuja razão eu não identificava continuou, e tenho certeza que para muita gente foi assim, porque não ouvi nenhuma opinião que não passasse de "que visceral", "que intenso", "que forte", "Almodóvar é Almodóvar". Bom, se é assim, a vida continua.
E continuou até semana passada, quando outro amigo inadvertidamente me ajudou a entender. Enquanto ele me contava suas impressões sobre o filme, consegui chegar na possível origem do meu incômodo. A tese era a seguinte: será que Almodóvar, pelo menos nesse filme, foi tão Almodóvar assim?
Para ser mais específica, estou falando da hierarquia de gêneros sobre a qual ele constrói seus personagens, geralmente mulheres-fortes-obstinadas-heroínas-vitimizadas, e os homens-escrotos-manipuladores-que-merecem-morrer-no-final. A impressão que dá é que essa marca (poderíamos chamar de discurso?) que encantou tanta gente em seus filmes mais genuínos, quando passou para um thriller pretensioso, simplesmente não colou.
E esta hipótese me faz pensar em outras duas. A primeira é se esta fórmula (as mulheres são legais, os homens não) já não está um pouco desgatada quando se olha para a contemporaneidade. Será que este conjunto de arquétipos, mitos e crenças ainda conversa com quem somos hoje, homens e mulheres? Não falo apenas sexuais, mas de mudanças em todos os sentidos (sociais, culturais, psíquicos, políticos, morais, espirituais e sexuais). Para melhor ou pior? Não sei, esta já é outra (e longa) discussão que não cabe aqui. Mas o fato é que estes extremos estão cada vez mais perto do centro. O bem já não é tão bom assim, e vice-versa. A linha está tênue demais para que a gente precise escolher um lado. Guerra dos sexos então, nem se fale. Esta sim fede a naftalina.
Muito em função destes pensamentos, esta construção da relação entre vítima e carrasco, se não for roteiro de quadrinhos, é sempre muito relativa. Sim, o filme até tem um pouco desta estética comics (ok, entendido, divertido), mas também revela uma pretensão de estimular uma reflexão mais ampla, um pouco mais filosófica. Se foi esta da mulher como vítima de seu meio, ah não, de novo não, please. Será mesmo que nesta relação homem-mulher existe uma força tão arcaica assim que nunca há de mudar? Se existe, quero saber qual é.
Daí chego na segunda hipótese, que tem a ver com a imagem que ele construiu como o diretor que mais entende da alma feminina. Vários fatores determinaram sua fama: ele fez filmes incríveis (e com mulheres poderosas como Penélope Cruz), tem este jeito de gênio maluco do circuito alternativo e é gay (teoricamente, ninguém melhor que ele para entender desta tal alma feminina). Funcionou. Até Angelina Jolie fez "a desesperada" na frente das câmeras para conseguir um papel seu. Justo ela, tão acostumada a ganhar. Ele bem que poderia responder: "se quer entrar para meu time, vai ter que bancar a coitada".
Piadinhas infames à parte, minha dúvida é. Se nos ama tanto, por que condenou o herói da história a viver aprisionado no corpo de uma mulher? Soou como punição máxima de uma existência, maior que a morte. Foi isso mesmo ou será que estou louca? Eu não quero que me expliquem o roteiro, só quero saber que força pulsante fez Almodóvar chegar a ele.
Não deu para saber direito qual foi. Só posso dizer que "A Pele que Habito" tem cheiro de raiva embutida, e dessa vez não é pelos homens. Se não é raiva, pode ser que ele tenha se cansado de falar deste universo (que ele próprio criou), e acabou saindo assim.
Você que assistiu, feche os olhos, invada o filme e tire a máscara do Antônio Bandeiras. É provável que encontre ali Almodóvar e seu alter ego masculino, tão controlador quanto o de seus personagens. Será que não? Se eu estiver certa, tudo bem. Afinal, que mal há nisso?
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Para quem ainda não viu, aqui está o trailer.
Vale a pena.
Almodóvar é sempre Almodóvar!
Esta história toda me fez pensar nas músicas do Chico Buarque. Muita gente fala que ele entende a alma feminina, mas eu não acho não. As letras até saem da boca "mulherzinha apaixonada", mas a alma mesmo é do bom e velho "cafa". Pode prestar atenção.
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Também fico pensando na definição de alma feminina. Alguém tem? Coloquei no Google, não saiu no Wiki, é sinal que não existe. :-)
5 comentários:
Oi, Renata (olha o chato aqui de novo!). Tive uma breve discussão sobre esse filme com o Júlio. Em suma:a princípio, também concordei com ele que nesse filme, quiçá, Almodóvar não tenha sido o feminista de sempre, quiçá tenha, involuntariamente, exibido uma até então oculta misoginia. Mas...
Não terá sido uma sutil ironia? Punição pior que a morte é ser mulher (por conseguinte, ser um "fraco"). Ok. Mas não do ponto de vista dele, Almodóvar, mas, sim dos misóginos de plantão (não só homens mas mulheres também). Vale lembrar que, antes da "transformação", o personagem (não me recordo o nome dele) era o típico cafajeste latinoamericano. Mas só conseguiu se livrar dos seus algozes usando, digamos, "ardis femininos" (ao seduzir o personagem de Bandeiras e matá-lo a traição, ao invés de partir para o confronto direto como faria um autêntico "machão". Quiçá Almodóvar tenha na verdade tido a intenção de mostrar que a força bruta masculina (parafraseando Camões, a fraca força humana masculina),no fim, é vã. Se a maior punição é ser mulher, a maior ironia é ser homem. Ou, quiçá, eu estou fazendo o papel de advogado do Diabo. Um abraço.
Alexandre Garcia
Oi, Alê.
Oba, que legal que você escreveu.
Chato coisa nenhuma. Bem divertido discutir arte com você, isso sim...
Bem, como você viu, eu escrevi o post apenas com base em hipóteses, até porque Almodóvar não nos fornece tantos elementos assim a ponto de sua (possível) misoginia virar uma tese. A prisão de um homem no corpo de uma mulher é a melhor, mas talvez seja também a única...
Nunca iremos saber se foi uma sutil ironia ou uma faceta oculta. Mas isso também não importa muito... Até gosto bastante de pensar num "Almodóvar misógino". Primeiro porque prefiro que os grandes artistas não sejam "so nice" assim o tempo todo... Na minha opinião, usar lados mais sombrios da própria personalidade contribui para a riqueza da própria obra. Então, qualquer conclusão é limitadora e inútil. Nesse caso, o que vale é a reflexão. O que você acha?
E, sim, os homens de Almodóvar continuam sendo os homens de Almodóvar. Uns boçais cujos esforços são sempre inúteis, improdutivos... Cujas existências são quase irrelevantes... Acho que os personagens masculinos de "A Pele que Habito" não traíram o diretor tanto assim... Mas fico pensando que, mesmo tão vilões, suas motivações estão sempre ligadas à força destas mulheres, "sempre tão poderosas e donas de si". Também não é uma forma de, inconscientemente, colocá-los numa posição de vítima? Afinal, coitadinhos, eles só agem por instinto...
Até, Alexandre, boa semana. :-)
Oi, Renata. Engraçado que eu estava discutindo com o Leandro hoje, no serviço, sobre o Almodóvar.
Embora eu, repito, esteja meio que fazendo papel de advogado do Diabo, também creio que ser um grande artista não se traduz necessariamente em ter um grande caráter. Talvez na maioria das vezes seja o contrário. Acho que o sublime da arte brota do que há de mais podre da natureza humana. Artistas são criaturas fabulosas (lembro-me de ter lido, não sei onde, que o significado antigo da palavra "fabuloso" equivalia a monstruoso; se eu não estiver enganado, a ambiguidade ficaria perfeita).
No caso do cineasta espanhol, acho que, ao invés de, involuntariamente, "confessar-se" misógino, ele, ao contrário, adotou a sutil e perigosa (para ele mesmo) estratégia de se apossar do discurso que ele tanto condenou e exibi-lo no filme para demonstrar o quão ridículo ele é (como se ele, nas entrelinhas, dissesse: "vocês acham mesmo que o homem é o sexo forte? Vejam o fim patético do cirurgião!"). Algo parecido, guardadas as devidas proporções, ao que o nosso Machado de Assis fazia. Ao invés de partir para o ataque direto (como fazia o Lima Barreto), ele se apossava do discurso da elite branca e racista e, assim, caberia ao leitor ver o quão infundado tal discurso soava (Machado, feminino?). Vale lembrar que o nosso escritor já foi acusado de fechar os olhos ao triste quadro social à sua volta ao invés de adotar uma postura mais engajada. Talvez, de certa forma, o mesmo caso do Almodóvar. Mas, o importante mesmo é o quanto o filme nos provoca. Além do mais, independente de qualquer coisa, um cara que resiste ao canto da sereia hollywoodiana e se mantém fiel à sua arte merece o meu respeito incondicional.
Um abraço.
Alê.
Se isso é ser advogado do diabo, espero que existam muitos advogados do diabo por aí. :-)
Mais uma vez, obrigada por seu ponto de vista e comparações tão profundas e bem-vindas.
Como Almódovar e Machado, acho genial este recurso (não sei nem se é um recurso, mas uma postura política transformada em estética ou linguagem?) de absorver um determinado discurso em personas ou instâncias que exatamente são o alvo desta crítica (ou o x desta questão). Na minha opinião, esta escolha é genial e para poucos.
Foi até por isso que fiz aquela comparação com o Chico (uma comparação bem rasa e infame, eu sei), mas imagine se ele colocasse uma visão feminista nos sentimentos das mulheres? Seria o clichê do clichê... Eu acho que ele só é genial porque coloca uma visão machista no sentimento feminino, e ainda por cima, as mulheres amam. Isso é obra de gênio. :-)
Portanto, que os grandes artistas continuem, assim, nos “enganando”. Que deixem os discursos diretos para outras pessoas, outras esferas, outras instituições... Não creio que o artista deva se engajar... Sua função é, antes, provocar, sensibilizar, fazer emergir. Não sei se você concorda...
Obrigada mais uma vez pela oportunidade desta troca de ideias. ;-)
Beijos, Renata
Eu também concordo com você que o artista deve, sobretudo, desconcertar. Arte engajada tende a se tornar mero panfleto. A estratégia de se apropriar do discurso que se pretende atacar é, como você mesmo diz, só para os gênios (mas é uma estratégia meio, digamos, "kamikaze"!). É por essas e outras que Machado é GÊNIO e Lima Barreto, não.O irônico é que, mesmo reconhecendo isso, meu coração sente uma afinidade muito maior pelo autor de "Policarpo Quaresma". Lembro-me de, ao terminar de ler "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", haver sentido uma comoção danada, uma vontade de abraçar o escritor negro, pobre, alcoólatra, talentoso e injustiçado que cometera aquelas páginas. É o Lima, com seu "Os Bruzundangas", o inspirador dos meus trabalhos.
Enfim, é isso. Até mais.
Alexandre Garcia
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